artigo escrito por Frederico Bussinger, engenheiro e economista. Foi Secretário de Transportes de São Paulo, Secretário Executivo do Ministério dos Transportes, Presidente da CPTM e CONFEA, Diretor do Metrô/SP e membro da Comissão Diretora do Programa Nacional de Desestatização
“Diante de impasses,
mais importante que procurar resolver o problema,
é formulá-lo de forma diferente”
(Milenar provérbio chinês e grego)
“Quem faz porto não é o banco,
é a carga”
[1886 - Guilherme Weinschenck;
1º projetista do Porto de Santos]
Cerca de duas dúzias de projetos ferroviários, novos ou de expansão, patinam para ser implementados. E a lista não pára de crescer. Trata-se de desperdício de oportunidades preciosas para a retomada do crescimento brasileiro.
No vasto rol de motivos a explicar tais dificuldades, a estruturação dos mecanismos de financiamento é presença constante, mormente nesses tempos de orçamentos públicos deficitários e comprometidos com custeio crescente. Se efetivamente quisermos ferrovias, há que se encontrar caminhos alternativos.
Grãos e minérios normalmente são vistos como cargas a serem transportadas. E o são. Mas também podem ser tratados como ativos que, transformados, podem gestar um outro ativo: uma ferrovia; por exemplo. No mínimo como um catalisador.
Ainda que não descritos dessa forma, mecanismos congêneres estão no DNA da maioria das ferrovias brasileiras; desde o “moderno” Decreto-Lei nº 641, firmado por D. Pedro II em 26/JUL/1852: “modicidade tarifária”, não-monopólio, exigência de criação de Sociedade de Propósito Específico – SPE. E, principalmente, a possibilidade de uso de “receitas acessórias” para viabilização do CAPEX e OPEX do empreendimento. Tudo já lá estava previsto!
Um século depois, logo após a descoberta dos vastos campos petrolíferos no Kuwait, foi criado o primeiro “Fundo Soberano” - FS. Atualmente, há quase 30 FS; a maior parte de países produtores de petróleo. O da Noruega, o maior deles, tem ativos que recentemente ultrapassaram US$ 1 trilhão!
A concepção original dos FS partiu da premissa de que o petróleo é finito e não-renovável. Além disso, levou-se em consideração o fato de que o que existia sob as areias do deserto ou das águas do Mar do Norte era um ativo “adormecido”: precisaria ser extraído e transformado em riqueza, ou outros ativos, capazes de gerar continuamente riquezas: um “círculo virtuoso”! Para tanto, os FS teriam duas funções precípuas: i) converter ativos; ii) regular oferta e demanda; por conseguinte, mercados.
Por esse mecanismo, o ativo petróleo foi sendo transformado em ativos de ferrovias, estradas, aeroportos e portos. De igual forma, em ativos de sistemas de energia e comunicação; em ativos de serviços (como os, eficientíssimos, hubs de aviação dos países árabes). E, muito importante, em “ativos humanos”, como educação e saúde. Dito de outra forma: a economia e a qualidade de vida desses países foi ganhando novo impulso com a transformação de ativos encobertos em ativos visíveis; ativos latentes em ativos dinâmicos; ativos não-renováveis em ativos perenes; energia potencial em energia cinética – para os mais ligados à física e à engenharia.
Posteriormente, o conceito foi expandido, passando os FS a incorporar, também, excedentes transitórios de produções renováveis (como foi o caso do Brasil; com o “boom das commodities”).
Nosso País, afortunadamente, tem tanto um como outro. Ou seja, tem tanto um rico subsolo, com praticamente toda a “Tabela Periódica” da química, como também uma crescente produção agropecuária em seu solo. Hoje, tais setores apenas clamam por logísticas mais eficientes e de maior capacidade: há, por conseguinte, uma movimentação pelo lado da demanda. Mas tais produções, tais cargas, na linha dos FS, bem que poderiam paralelamente contribuir para impulsionar a expansão e implantação de infraestruturas logísticas no País: ou seja, gerarem transformação e crescimento pelo lado da oferta.
No Pará, por exemplo, apenas ao longo do Trecho-Sul da projetada Ferrovia Paraense, os 16 maiores sítios minerários teriam potencial de produzir algo como 80 milhões de toneladas/ano (cerca de metade do que movimenta anualmente a Estrada de Ferro Carajás – EFC). Riqueza que só existiria, evidentemente, se tivesse como ser escoada: sem isso, seguiria “adormecida”!
Desde D. Pedro II, o mercado de capitais e o mundo financeiro se desenvolveu sobremaneira. Certamente há diversos mecanismos capazes de intermediar a conversão desses ativos minerais e agropecuários em ativos logísticos. E, em se tratando majoritariamente de commodities as cargas a serem atendidas, isso poderia acontecer com mais facilidade ainda; e eventualmente com um duplo efeito colateral: i) redução do custo dos empréstimos (juros + riscos) e; ii) até como mitigador do tão invocado, e ainda não plenamente resolvido, risco cambial para projetos infraestruturais no Brasil. Em ambos os casos, melhorando os indicadores do empreendimento e, com isso, sua atratividade.
A boa notícia é que já há experiências recentes nesse sentido: i) Desde o final do Século XX, receitas de contratos de arrendamento no Porto de Santos foram securitizadas e utilizadas pela Codesp (Administração Portuária) para quitação de passivos e para investimentos. ii) De igual forma, algumas ferrovias estatais brasileiras, antes de serem concessionadas, praticaram antecipações de fretes (futuros) para fazer face às restrições orçamentárias da época. iii) A expansão do Porto de Vila do Conde, no início dos anos 2000, foi viabilizada com parcelas de tarifas (futuras) do aumento da movimentação de bauxita, alumina e alumínio que lastrearam o financiamento.
Tais experiências podem ser desenvolvidas na forma de debêntures incentivadas, fundo de recebíveis, participação acionária de usuários; todos lastreados em commodities minerais e agropecuárias que (incidentalmente) serão posteriormente transportadas. Mas, também, é possível lançar-se mão de recursos oriundos de outorgas de novas concessões (p.ex., da FNS) ou renovação antecipada de contratos existentes (como da EFC; discutida nessa Audiência Pública) para viabilizar a implantação de novas ferrovias; explicitado pela Lei nº 13.448/2017. Ou a combinação deles.
Enfim, tais mecanismos podem contribuir para destravar tantos projetos que hoje patinam e, assim, trazer novas perspectivas para a infraestrutura logística no Brasil.
Observação: este artigo foi escrito a partir da manifestação do autor na audiência pública da Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados em 7 de novembro de 2017: “Renovação da concessão da EFC e aplicação de recursos dela decorrentes”