Sexta, 17 Mai 2024

escrito por MARCO ANTONIO MOYSÉS FILHO e RENÃ MARGALHO SILVA

A demurrage é, basicamente, a sobrestadia de navio ou contêiner que gera uma obrigação de pagar uma quantia pré-fixada ao transportador. O prazo prescricional para o ingresso de ação visando a cobrança de demurrage é um dos temas mais polêmicos do direito marítimo, repercutindo diretamente nas relações jurídicas entre vários agentes da navegação e interessados na carga.

Primeiramente, cumpre realizarmos uma pequena digressão a fim de elucidar um pouco da história do comércio por via marítima, o implemento do contêiner e a extensão do instituto da demurrage a estas unidades de carga.

Antes do surgimento dos contêineres, as cargas eram carregadas individualmente nos navios, em especial as sacarias, como o café e o açúcar. Tal forma de trabalho levava muito tempo, e dependendo das condições do clima e de pessoal disponível para a estiva e capatazia, o carregamento precisava ser suspenso e retomado posteriormente. Por vezes, alguns destes imprevistos impediam os navios de retomarem a viagem a tempo, causando assim sua sobre-estadia, implicando em pagamento adicional de tarifas e estadias, fosse em relação ao porto, ou em relação ao contrato de afretamento (que não seria cumprido no prazo).

Com o advento dos contêineres em 1956 e sua grande aceitação no comércio internacional, as cargas soltas podem agora ser transportadas dentro das unidades de carga com tamanhos padronizados, facilitando o seu carregamento e transporte e, por conseguinte, aumentando a eficiência de toda a operação. Mesmo que as sobre-estadias do navio e dos contêineres sejam institutos diversos, não há como negar sua origem comum, e por isso é essencial que, mesmo analisando o caso dos contêineres, sejam feitas as digressões explicações atinentes à origem do instituto.

De forma bem simplificada, para que seja realizado o transporte, o contêiner e seu lacre são disponibilizados àquele que deseja enviar sua carga (seja seu dono ou um agente de carga), chamado de shipper, que deve preencher a unidade de carga com sua mercadoria, lacrá-lo e retorná-lo ao transportador para que a carga seja então embarcada. Chegando ao porto de destino, o consignatário (consignee), que pode ou não ser o real proprietário da carga, recebe o contêiner ainda lacrado e deve esvaziá-lo e devolvê-lo à empresa transportadora.

O contêiner, de acordo com o entendimento da doutrina majoritária e do artigo 24 da Lei 9.611/98, é parte integrante do navio porta-contêineres, não sendo apenas mera embalagem, ou partes autônomas. Em suma, o contêiner é um fragmento bem definido do navio, móvel, fungível e com finalidade específica e cumulativa de armazenagem e transporte de carga.

Para melhor entendimento é viável demonstrar a diferenciação entre dois institutos derivados da sobre-estadias de contêineres, a demurrage e a detention. A primeira ocorre na importação, quando recebido o contêiner para descarga e a sua devolução vai além do prazo avençado. Geralmente este prazo é determinado em dias, sendo que há um período livre de pagamentos adicionais (free-time) e após este prazo são cobrados valores diários fixos ou crescentes, podendo retroagir a data do recebimento do contêiner. A segunda acontece na exportação, quando o contêiner é disponibilizado para que seja colocada a carga dentro dele e entregue à empresa transportadora. Para este procedimento também há um prazo a ser respeitado, sendo que sua não observância também implica em pagamentos adicionais.

A não devolução ao transportador do contêiner recebido enseja diárias adicionais pelo uso do mesmo que, se não recebidos de forma amigável, podem ser cobrados judicialmente.

O inicio da contagem do prazo para propor a ação de cobrança se inicia com a devolução do contêiner ao armador, ademais, o prazo prescricional para o ajuizamento da ação é controverso. Existem correntes doutrinárias e jurisprudenciais que defendem os prazos de um, três, cinco e dez anos.

O prazo prescricional de um ano é defendido por muitos, uma vez que este era previsto no artigo 449, 3 do Código Comercial (CCom), que quando revogado pelo Código Civil de 2002 (CC), não teve previsão correspondente. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio do informativo 85/2001, entendeu, antes de entrar em vigor o atual CC e, por conseguinte, anteriormente a revogação do supramencionado artigo, que o contêiner era parte integrante do navio e o prazo para mover ação de cobrança era de um ano.

Corroborando com este prazo, a lei 9.611/98 (Lei do Transporte Multimodal) prevê no seu artigo 22 o prazo de um ano para ajuizamento das ações judiciais oriundas do não cumprimento de responsabilidades decorrentes do transporte multimodal. Apesar de a referida lei tratar apenas do transporte multimodal, parte das decisões judiciais fundamentam que tal dispositivo deve ser interpretado analogicamente, abarcando também o transporte unimodal, considerando a devolução do contêiner, como uma responsabilidade oriunda do transporte.

Ademais, outra fundamentação pouco utilizada, mas plenamente viável, é que a demurrage é cobrada, em regra, sob forma de adesão. O CC, em seu artigo 423, estabelece o princípio do in dúbio pro aderente, ou seja, em caso de dúvida e ambiguidade do contrato, este deve ser interpretado da maneira mais favorável ao aderente. Utilizando-se, de forma cumulativa, o princípio da função social do contrato, descrito no artigo 421, verifica-se que o importador, nos moldes do artigo 35 do decreto 80.145/77, possui o prazo de um ano para ingressar com ação judicial contra o transportador decorrente de dano a carga, logo, com base na isonomia contratual, amplia-se esse prazo para o transportador cobrar do importador eventuais danos derivados do transporte – demurrage -, moldando a relação jurídica inter partes com os ditames Constitucionais e, consequentemente, adequando a finalidade do contrato – ou eventuais consequências – a sua função social.

Os defensores do prazo trienal entendem que a natureza jurídica da demurrage é de indenização ou de multa. Neste caso, o que irá distinguir, na prática, não é o prazo prescricional de ambas, mas as peculiaridades de cada instituto. Independente da natureza jurídica – multa ou indenização -, a cobrança de sobre-estadia será uma forma de reparação civil, sendo hipótese abarcada pelo artigo 206, § 3º do CC.

Os que defendem que é clausula penal (multa), entendem que o atraso na entrega do contêiner ao armador gera uma obrigação de pagar uma quantia pré-fixada em contrato, sendo assim, a demurrage seria uma penalidade previamente estipulada, de um dano presumido, decorrente de um inadimplemento parcial da obrigação do importador – devolver o contêiner dentro do free time -, adequando-se as hipóteses descritas nos artigos 408 a 416 do CC. Ressalta-se que caso a cobrança de sobreestadia seja considerada uma cláusula penal, o inadimplemento tem que ser causado por culpa do importador e o valor a ser pago a nível de reparação civil, limita-se ao valor da obrigação principal, ou seja, do frete. Existem posicionamentos que defendem a responsabilidade objetiva do importador, nos moldes do artigo 927 § 1º do CC, considerando a possibilidade de atraso na devolução do contêiner, como risco inerente a atividade.

Muitos entendem que a natureza jurídica da demurrage é de indenização. Apresar de estar previsto contratualmente, ou seja, antes mesmo da ocorrência e quantificação dos danos reais, há entendimentos que se trataria de uma indenização pré-fixada, baseada na média de danos que o armador terá com a indisponibilidade do contêiner por tempo excessivo. Por outro lado, há entendimento que a indenização não pode ser pré-fixada, pois esta deriva de um dano concreto, que deve ser apurado mediante lastro probatório, estando o valor a ser indenizado, diretamente ligado ao dano real e não ao dano presumido.      O Direito Marítimo Privado, por estar muito ligado as relações comerciais entre diversas soberanias, tem como uma das fontes os costumes internacionais, logo, apesar de não estar previsto no CC, tão pouco no CCom, o instituto da indenização pré-fixada é utilizada com frequência no comercio internacional. O Banco Central do Brasil, por meio da circular 2.393/93, revogada pela circular 3.280/05, entendia que a demurrage era uma “(...) indenização convencionada para o caso de atraso no cumprimento da obrigação de carregar e descarregar as mercadorias no tempo pactuado”. Destacam ainda, que a limitação do quantum a ser pago por danos decorrentes do atraso da entrega do contêiner, geraria um desequilíbrio contratual, gerando um ônus excessivo ao armador, posto que o contêiner é necessário ao desenvolve sua atividade fim – o transporte – e, por conseguinte, fonte de lucro, tendo que ser considerado não só o valor do bem, ou do frete, mas o dano emergente e lucro cessante gerado pelo sua indisponibilidade.

Os que entendem que o prazo prescricional é de cinco anos, defendem que a demurrage seria um suplemento do frete. O valor do frete é firmado por contrato, ou seja, um instrumento particular inter partes, gerador de direitos e obrigações. Diferente dos entendimentos supraexpostos, essa corrente doutrinária entende que a demurrage é parte integrante da obrigação principal. Partindo dessa premissa, o artigo 206, §5º, inciso I do CC define que prescreve em cinco anos “a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular”, abarcando, com isso, a cobrança de frete e, por conseguinte de sobre-estadia de contêiner.

No mesmo sentido, pode ser defendido o prazo prescricional de cinco anos baseado em outros instrumentos particulares, como o "Termo de Responsabilidade de Devolução de Contêineres" e seus congêneres.

O prazo de dez anos é defendido por aqueles que entendem que a cobrança de demurrage não seria uma indenização, multa, clausula penal ou suplemento do frete. Por não haver disposição legal expressa sobre o prazo prescricional da demurrage, parte da doutrina entende que se enquadra na regra do artigo 205 do Código Civil, ou seja a prescrição de dez anos, por não haver prazo menor fixado por lei. Ademais, para essa doutrina, entendimentos sobre prazos prescricionais não comportaria analogia, tão pouco interpretação extensiva, pois, não existem casos que a lei não preveja a prescrição, mas, tão somente, hipóteses não abarcadas de forma específica, sendo, todas estas, absolvidas pela previsão abstrata do artigo supracitado.

Verificamos que a analogia e a natureza jurídica da demurrage são as bases argumentativas das diversas linhas de entendimento, afetando diretamente o prazo prescricional e a limitação, ou não, de responsabilidade do importador.

A norma do artigo 449, 3 do CCom que era explícita quanto ao prazo prescricional foi revogada pelo atual CC, pois mesmo tratando de questões de Direito Marítimo, se encontrava na parte primeira do CCom.  Como vimos, apesar da disposição do CCom, os doutrinadores da época entendiam que a sobre-estadia de navios, o instituto original, seria uma indenização.

Apesar dos diversos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, acreditamos que o atual momento de elaboração do novo Código Comercial é propício para a discussão destes prazos e especialmente para a elaboração de uma norma que solucione as dúvidas sobre o assunto. Entendemos ainda que longos prazos prescricionais não se coadunam com a velocidade e as necessidades do comércio por via marítima e, sobretudo com a função social do contrato, posto que fere o princípio da isonomia.

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