Semana passada, apresentei nove poemas de Blaise Cendrars sobre o porto de Santos e a viagem do cais até São Paulo traduzidos por Patrícia Galvão, a Pagu, sendo que um deles, Chegada a Santos, já havia sido, junto com outros dois poemas, motivo da primeira coluna deste espaço, lá em 2005.
A sequência dos títulos é ela mesma um roteiro: Chegada a Santos, A bombordo, Praia do Guarujá, Paisagem, Paranapiacaba, Bananal, São Paulo Railway Co., Piratininga e São Paulo.
Travessia tão ordinária para santistas e paulistanos, esquecemos que subir ou descer a Serra do Mar representa literalmente atravessar uma floresta. É a sensibilidade do viajante que acaba somando significados à muralha. Vejamos, por exemplo, uma descrição de amante da engenheira, ainda que invenção da ficção, Manuel Barbosa, protagonista de A Carne, romance de Júlio Ribeiro de 1888 que já passou pelo Porto Literário em que o personagem vem do interior para Santos tratar assuntos da fazenda de café da família. Ali, como escrevi no artigo De São Paulo ao porto em alguns indícios, Barbosa, como fez Cendrars nos poemas Paisagem e São Paulo Railway Co., descreve em carta a serra e a ferrovia, só que em um momento de deslumbre com a engenharia inglesa:
A estrada de ferro inglesa de Santos a Jundiaí é um monumento grandioso da indústria moderna.
De Santos a São Paulo percorre ela uma distância de 76 quilômetros.
Todas as obras de arte dos terrenos planos são admiravelmente acabadas, são perfeitas.
Até a raiz da serra a distância é de 21 quilômetros: há três pontes, uma das quais notabilíssima, sobre um braço de mar Casqueiro. Mede ela 152 metros, tem dez vãos iguais, assenta sobre pregões robustíssimos.
Da raiz da serra até o rechano do alto, contam-se oito quilômetros. A altura é de 793 metros, o que dá um declive de dez por cento.
Como se galgam esses desfiladeiros, essas garuras vertiginosas?
De modo simples.
Divide-se a subida da serra em quatro planos uniformes de dois quilômetros cada um. Para a tração, empregou-se um sistema adotado em alguma minas de carvão da Inglaterra. Máquinas fixas de grande força recolhem e soltam um cabo fortíssimo, feito de fio de aço retorcidos. Presos às duas pontas desse cabo giram dois trens: um sobre, outro desce. A agulha de um odômetro indica com exatidão matemática o lugar do plano em que em que se acha o trem, indica o momento de encontro de ambos eles. Um brake de força extraordinária permite suspender-se a marcha quase instantânea, e um aparelho elétrico põe os trens em comunicação imediata com as respectivas máquinas fixas. O cabo resfriado ao sair por um filete de água, corre sobre cilindros, sobre roldanas que se revolvem vertiginosas, com um ruído monótono, metálico, por vezes forte, por vezes muito suave.
O serviço é tão regular e tão bem feito, que em grandes extensões há um único jogo de trilhos a servir tanto para a subida como para a descida. Funciona a linha há mais de vinte e um anos e ainda não se deu um só desastre. Pasmoso, não?.
Para comparar, repito Paisagem, Paranapiacaba e São Paulo Railway Co., de Cendrars:
PAISAGEM
A terra é vermelha
O céu é azul
A vegetação é de um verde escuro
Essa paisagem é cruel dura triste não obstante a variedade infinita de formas vegetativas
Não obstante a graça inclinada das palmeiras e os ramos fabulosos das grandes árvores em flores flores de quaresma.
PARANAPIACABA
Paranapiacaba é a Serra do Mar
Aqui é que o trem é levantado pelos cabos e transpõe a dura montanha em várias secções
Todas as estações são suspensas no vácuo
Há muitas quedas de água e grandes trabalhos de arte foram necessários para escorar em toda a parte a montanha que se pulveriza
Porque a Serra é uma montanha podre como “les Rognes” sobre Bionnasay, mas les Rognes cobertos de florestas tropicais
As ervas más que crescem nos declives, nas valas entre os caminhos são sempre plantas raras como não se vê em Paris a não ser nas vitrinas das grandes horticulturas
Numa estação, três mulatos indolentes estavam estragando as plantas.
SÃO PAULO RAILWAY CO.
O rápido está sob pressão
Nós nos instalamos num Pullman pompeiano semelhante aos confortáveis vagões de das estradas de ferro egípcias
Estamos em redor de uma mesa de bridge em amplas poltronas de vime
Há um bar lá no fim do vagão onde bebo o primeiro café de Santos
No início cruzamos com um comboio de carros brancos que tinham esta inscrição:
Caloric Cy.
Está falando.
Sufoco.
Aí já percebemos uma mudança de tom, menos triunfalista que o texto do final do século XIX. A passagem de Cendrars pelo Brasil se deu em 1924 e seus poemas foram publicados em 1925.
Dois anos depois, a literatura nos dá outro testemunho da travessia, só que em outro gênero, a crônica de viagem. Em 1927, Rudyard Kipling, o autor de Mowgli, o Menino-Lobo, escreveria uma série de reportagens sobre o Brasil para o jornal britânico Morning Post, entre as quais O Deus dos relâmpagos: Como a Energia chegou a São Paulo, em que descreve para o público inglês o funcionamento da Usina Henry Borden, em Cubatão, inaugurada no ano anterior. Ali, nova descrição da ferrovia e da serra:
Deve haver no mundo uma região pior que esta para estradas de ferro; mas nunca vi nenhuma. Cada metro dessas traiçoeiras escarpas conspira contra o homem, dos declives quase verticais ocultos acima, até os desfiladeiros completamente verticais abaixo. É impossível não reverenciar a perícia demoníaca com que a água sempre ataca os pontos fracos dos suportes dos cavaletes, a boca dos túneis e as curvas. Todos os cumes e ribanceiras foram protegidos com placas de aço, revestidos de pedras, concretados e, onde foi possível, desviados; o sistema de calhas era amplo como as cisternas urbanas, bem como os aquedutos. (...) E havia pontes de cavaletes de aço que o lançavam por entre os precipícios, onde você poderia despencar por trinta metros para dentro de uma floresta de quinze metros antes de seu vagonete começar a andar de verdade. Para estudar-se o assunto de forma apropriada, a região toda deveria ser percorrida a pé, com guias e bastos de alpinista, em vez de uma cadeira confortável.
Não importa em qual chave, poema, carta (ainda que ficcional) ou relato de viagem, o contraste entre natureza e ação humana instiga a escrita.
Epílogo
Uma pequena homenagem de Porto Literário ao pensador Claude Lévi-Strauss, antropólogo belga de expressão francesa (como Cendrars) morto na semana passada aos 100 anos. Vou aqui pinçar um verso de Paisagem, de Cendrars, reproduzido acima na totalidade – “Essa paisagem é cruel dura triste não obstante a variedade infinita de formas vegetativas” – para lembrar de Tristes Trópicos (1955, um relato de viagem etnográfico de valor literário) e a descrição que ali ele fez de Santos, já apresentada aqui em Lévi-Strauss em Santos:
O litoral entre o Rio e Santos ainda propõe trópicos de sonho. A cadeia costeira, que em pontos sobrepassa os dois mil metros, desce até o mar e o recorta com ilhas e enseadas; praias de areia fina, bordeadas de coqueiros ou de selvas úmidas transbordantes de orquídeas (...). Pequenos portos separados por uma distância de cem quilômetros abrigam os pescadores em moradias do século XVIII, agora em ruínas, construídas de antanho por armadores, capitães e vice-governadores, com pedras nobremente talhadas.
(...)
Depois de ter se saciado de ouro, o mundo teve fome de açúcar, mas o açúcar também consumia escravos. O esgotamento das minas, precedido, ademais, pela devastação das selvas que proporcionavam combustível aos fornos, a abolição da escravidão e, finalmente, uma demanda mundial cada vez maior, orientam o São Paulo e seu porto, Santos, à produção de café. Primeiro amarelo, depois branco, vira por último negro. Mas, apesar dessas transformações que fizeram de Santos um dos centros do comércio internacional, o lugar continua a ser de uma secreta beleza; enquanto o navio penetra devagar entre as ilhas, sinto aqui o primeiro choque dos trópicos. Um canal verdejante nos fecha. Estendendo a mão, quase se pode agarrar essas plantas que no Rio de Janeiro retinha ainda à distância em seus invernáculos pendurados pelo alto. Em um cenário mais recatado se estabelece contato com a paisagem.
A região, o interior de Santos – planície inundada, crivada de lagoas e pântanos, entrecortada de rios, estreitos canais cujos contornos são eternamente esbatidos por uma neblina nacarada – parece a própria Terra emergindo no princípio da criação.
Referências
Patrícia Galvão. Nove poemas de Blaise Cendrars. A Tribuna, 2º Caderno, 09/09/1956.
Júlio Ribeiro. A carne. São Paulo: Saber, 1975 (1ª edição 1888).
Rudyard Kipling. O Deus dos relâmpagos: Como a Energia chegou a São Paulo. In: As Crônicas do Brasil. Edição Bilíngüe. Tradução Luciana Salgado. São Paulo: Editora Landmark, 2006.
Claude Lévi-Strauss. Tristes Trópicos. Barcelona: Paidós, 1988 (1ª edição 1955).