Gostaria de continuar nesta semana a escrever sobre o escritor chileno Roberto Bolaño, sobre quem me dediquei na última coluna e em outras ocasiões neste Porto Literário, mas a polêmica portuária que tomou conta da cidade de Santos nos últimos dias acabou me levando a tratar aqui dos apitos dos cruzeiros que deixam o cais de Santos. Não são minhas especialidades a poluição sonora e as normas de navegação. Meu objetivo é traçar um apanhado da própria polêmica.
* Navios que não apitam, não se despedem
Adianto que sou favorável aos apitos. Ontem mesmo, de minha janela do 12º andar na Ponta da Praia, acompanhei três cruzeiros deixando o Porto de Santos, cada um com seus dois apitos de despedida. Há quatro anos que estou neste apartamento e só me divirto quando ouço um destes petardos sonoros (porque a palavra apito lembra mais um barulho fino como o da arbitragem das competições esportivas). Cada supersopro que faz vibrar o vidro das janelas é um convite a esticar a cabeça e acompanhar as cores e luzes que deslizam pelo estuário.
Minha colaboração à discussão é fazer notar como o tamanho da reação à censura aos apitos mexeu com a identidade portuária do santista. Um exemplo extremo é uma carta em A Tribuna de 07/03 em que o missivista, num bairrismo xenofóbico, sequer admite que aqueles que reclamam possam ser santistas.
Tudo começa no dia 24 de fevereiro, quando aparece na seção de cartas de A Tribuna uma carta (não darei nomes de leitores) elogiando a atuação da Capitania dos Portos em ter multado uma companhia marítima por excesso de apitos. No dia seguinte, mais duas cartas apóiam a Capitania e criticam os “malefícios” da poluição sonora dos navios. No dia 26, uma figura pública, a diretora do Grupo de Proteção Ambiental do Litoral Paulista, Sueli dos Santos, elogia as três cartas anteriores.
A coisa não para: no dia 28, são publicadas mais duas manifestações de pessoas à frente de organizações. José Oliveira, da Comissão de Ensino Educação e Cidadania da Baixada Santista aplaude a Capitania pela medida, enquanto a presidente da ONG dos Amigos da Orla da Praia, Maria Pereira, acredita que o uso indevido dos apitos seria para Santos um exemplo que “denegrisse sua imagem turística”. A primeira carta contra a corrente sai na mesma seção e nela um leitor lamenta as “saudades” que está ficando dos apitos, considerando um “absurdo” as críticas.
A reação fica mais forte quando em 1º de março A Tribuna transforma a questão em reportagem e a balança muda de lado. Ali, o prefeito, o secretário de Assuntos Portuários e a secretária de Turismo de Santos defendem a manifestação sonora em prol do turismo. Na mesma reportagem, o colega de PortoGente Laire José Giraud defende o procedimento pela emoção que o som desperta nas pessoas, enquanto a diretora do Grupo de Proteção Ambiental do Litoral Paulista volta a ter voz, desta vez como fonte, e volta a apoiar a proibição do apito abusivo, do que, acredito, ninguém discorda.
No dia seguinte, aqui no PortoGente, Iris Geiger da Silva repercutia o assunto, perguntava: “imagens sonoras ou silenciosas?”, defendia o “charme dos navios” e recebia comentários de dois leitores, ambos favoráveis aos apitos.
No dia 07, mais três cartas em A Tribuna. Um leitor volta a alegar questões de segurança para a “proibição”. E aí fica uma coisa clara: os que não querem os apitos parecem confundir proibir o excesso (qualquer coisa além dos dois apitos curtos) com proibir completamente a manifestação sonora.
A favor do som dos navios, um missivista diz que o ruído é “breve e intermitente”. E aí surge a carta que resvala no preconceito contra “certas pessoas que vivem em nossa cidade”. Ele diz que estes “nada têm de santistas, não têm ideia do que é ser santista”. Mais à frente a coisa pega: “É chegada a hora de os ‘verdadeiros santistas’ se unirem e darem um basta nestes seres que escolheram nossa cidade (...) e de repente passam a exigir coisas que não são próprias deste povo ao qual pertenço e tenho orgulho disso”.
Bem, caro leitor. Para mim, o maior problema é que essas reclamações devem ser de santistas mesmo. São fruto de um conservadorismo maior que faz sombra à Cidade já há algum tempo. E mesmo que não sejam daqui, o que é isso de “dar um basta nestes seres”?
Epílogo
Isto aí em cima é para dizer que a melhor defesa dos apitos dos cruzeiros não é da raiva ou do preconceito, é a feita pela literatura. O escritor e crítico literário Flávio Viegas Amoreira publicou na Revista Pausa neste domingo texto em que deixa bem claro como a questão afeta a identidade local ou o atual “estágio psicológico de nossa alma coletiva”.
Ironizando o linguajar da norma e do direito, o escritor surpreso confessa que “já considerava [os apitos dos navios] ‘cláusula pétrea’ da jurisprudência de nossos hábitos”. E parágrafos adiante, ele indaga:
Terra estranha: Santos de dicotomias do pensamento; além do progresso e dos utilitarismos, permitam sem regras todos os apitos poéticos que são símbolos de nossa singularidade marítima. O que são minutos televisivos diante do estrépido lírico duma embarcação com todo “mistério alegre e triste de quem chega e parte”?
Nenhuma legislação ou norma técnica (ainda que se apite dentro dos limites) deve calar a poesia do mar que é composta a cada partida. Termino este Porto Literário com nosso escritor do sentimento atlântico do mundo:
O mar é santo, os navios representam nosso imaginário salgado turbinado de ferro: calar vapores é abstrair do Oceano o anúncio de toda sua arte. Planície encharcada, devemos ao Mar essa réstia urbana de história: ao Mar devemos submissão e amor devoto.