Quinta, 26 Dezembro 2024

I “Revita... o que?”
Nas primeiras páginas do romance “Jacinto, o Sansão do Cais Santista” (Sergio Willians, 2011, edição do autor), Pedro, 18 anos, aluno do primeiro ano de Jornalismo, é levado de 2011 para 1905, quando conhece o rapaz a quem o título se refere. Ainda sob o choque, ele começa a perceber o deslocamento temporal ao reconhecer, novíssimos, os armazéns I e II do porto de Santos. Os dois conversam:

-         Peraí. Mas pelo que me lembre esses armazéns 1 e 2 da faixa do Valongo deveriam estar caindo aos pedaços! Devem ter mais de 100 anos. E, que eu saiba, o tal projeto de revitalização do Valongo ainda não saiu do papel.

-         Revita... o que? Olha, meu amigo, você me salvou a pele, mas acho melhor ir embora. E acho que você deveria fazer o mesmo.

Os comentários sobre o livro ficam para outro dia. A intenção hoje, nesta semana do aniversário de Santos, é aproveitar esta cena para voltar a traçar relações entre ficção e História a partir de textos sobre o porto de Santos.

Considero o diálogo acima um destes nós pelos quais desvendamos essa trama, nos quais um recurso ficcional, a viagem no tempo (sem levar em conta certas teorias da Física Teórica), permite, pelo efeito de contraste, imaginar aquele lugar, não diria recuperado, mas sim novo, como revela a naturalidade de Jacinto com a então recente paisagem urbana. Daí a força da ficção: a realidade dos personagens (ainda que viagens no tempo só ocorram na ficção) nos faz imaginar aqueles armazéns como estavam poucos anos após terem sido construídos e então voltamos ao presente e trazemos esta imagem – que é nossa, individual, criada no momento da leitura – para compor o imaginário daquele lugar. Esta é a contribuição da ficção para o conhecimento sobre o mundo.

E a singela pergunta de Jacinto – “Revita... o que?” – traz tantos ecos urbanísticos, sociológicos e reflexão sobre a História de nossa cidade que desatar este nó merece um desenvolvimento mais alongado do que esta nota de aniversário.

II Porto e cidade
O impacto das operações portuárias sobre a cidade é um tema vasto na literatura aqui produzida. Não só como cenário, mas como elemento narrativo mesmo. É o caso de “A História dos Ossos” (2005), de Alberto Martins, cuja trama se desenvolve a partir do início do processo de transformação do Cemitério do Paquetá em um pátio de contêineres. Exagero ficcional talvez, mas bem simbólico.

Já em “Navios Iluminados”, livro de 1937 ao qual me refiro por romance de identidade portuária (ver aqui), o controle de parte da cidade pelas operações portuárias é quase como o tema das entrelinhas, de tão entranhado o cotidiano dos personagens moradores do Macuco com a rotina de sirenes, embarques e guindastes. É como se o porto avançasse sobre Santos ou como se o bairro portuário pertencesse mais ao porto do que à própria cidade, tanto que o protagonista só deixa o local em condições especialíssimas.

Clássico de nossas letras (ver aqui), o livro é também iluminador de um momento importante da literatura nacional, os anos 30, quando o romance regionalista e a literatura proletária eram os gêneros mais desenvolvidos. Pelo próprio espaço portuário, local de trocas simbólicas além das econômicas, industrial, mas ao ar livre, o romance adquire um desenvolvimento híbrido entre os dois polos, colocando um retirante nordestino como estivador no cais de Santos.

III Revitalização
Um dos ecos da pergunta “revita... o que” passa pelo número 6 da Rua Visconde de Vergueiro, no Centro de Santos, um prédio residencial que não tem nada de histórico, mas ali os moradores têm como vizinhos dois estúdios de artistas plásticos: o Estúdio Valongo, coletivo, e o estúdio de Fabrício Lopez. Essa convivência entre moradores e artistas promove a revitalização do Centro Histórico, de uma forma que os cafés e restaurantes não conseguem, revitalização de dar vida outra vez a um lugar, reanimá-lo, obtendo algo que está além do tombamento ou da restauração arquitetônica. Esta é também uma das funções da arte.

Feliz aniversário.

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