I
Na década de 70 do século XIX, Machado de Assis discorria na imprensa de Nova York sobre os temas da literatura brasileira daquele período. No meio do texto, há uma consideração muito eficaz sobre as relações entre História e Literatura, tema deste espaço já há algum tempo. Ao tratar dos povos de antes da chegada de portugueses e espanhóis como tema literário, Machado escreveu que se deve “inclinar a imaginação dos poetas para os povos que primeiro beberam os ares destas regiões, consorciando na literatura o que a fatalidade da história divorciou”.
Chamo atenção para o verbo “inclinar”. Pode-se presumir que o criador da Academia Brasileira de Letras imaginava que a literatura se inclina (ou é inclinada) em direção a seu objeto, isto é, ela parte de seu espaço autônomo em busca do mundo. Talvez, se tivesse lido Roland Barthes, Machado dissesse que a literatura é uma forma de conhecimento do mundo, mas a sutileza do verbo inclinar nos dá uma ideia bem precisa do envolvimento da literatura com as coisas naquela mistura semiótica entre saber e sabor.
Outra expressão deste pequeno trecho, se não põe a escrita literária em oposição ao fato histórico, ao menos manifesta claramente sua autonomia (“consorciando na literatura o que a fatalidade da história divorciou”. Os termos usados permitem a continuidade de uma interpretação pela sutileza. Consorciar e divorciar são verbos afetivos, revelam a ocorrência de fatos marcantes da vida de cada um e da coletividade. Ao por a literatura como força de consórcio entre as coisas do mundo, Machado nos mostra o poder que ela tem de refletir e interferir no mundo, e não apenas de registrar fatos, utilidade à qual se resigna o jornalismo.
A passagem acima foi retirada do artigo Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade, publicado em O Novo Mundo, jornal novayorquino, em 24 de março de 1873. O texto está na coletânea O ideal do crítico, organizada pelo escritor e crítico literário Miguel Sanches Neto e publicado em 2008 na coleção Sabor Literário da Editora José Olympio.
II
O livro ganhei de presente de minha irmã no Natal e seus ensinamentos estão valendo como verdadeiras resoluções de ano novo para este colunista. Estão ali, em O ideal do crítico, artigo que dá nome ao livro, sugestões que não envelhecem e que parecem se tornar cada vez mais necessárias de serem ouvidas. E olhe que o artigo, publicado no Diário do Rio de Janeiro, é de 8 de outubro de 1865:
Estabelecei a crítica, mas a crítica fecunda, e não a estéril, que nos aborrece e nos mata, que não reflete nem discute, que abate por capricho ou levanta por vaidade; estabelecei a crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada – será esse o meio de reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos; condenai o ódio, a camaradagem e a indiferença – essas três chagas da crítica de hoje; ponde em lugar deles a sinceridade, a solicitude e a justiça – é só assim que teremos uma grande literatura.
Para Machado, é simples: a crítica tem um papel civilizatório (ainda que esta expressão hoje esteja causando reações adversas), não só de defender a boa literatura (ver Em defesa da literatura), mas também de promover o consórcio entre as gentes, mesmo quando, acrescento, é feita de maus sentimentos.
O homem que viria a ser o principal nome da literatura brasileira pregava a tolerância além das preferências dos críticos. Alguém de predileção pela tradição clássica, exemplifica Machado, não deve condenar, só por isso, obras inspiradas pela “musa moderna”, enfim, a admiração por um trabalho não deve obscurecer as belezas de outro. Essa tolerância é que permite uma independência nunca agressiva ou áspera, mas sempre independência, do tipo que não “precisa sair da sala para mostrar que existe”:
Para que a crítica seja mestra, é preciso que seja imparcial – armada contra a insuficiência dos seus amigos, solícita pelo mérito dos seus adversários –, e neste ponto, a melhor lição que eu poderia apresentar aos olhos do crítico seria aquela expressão de Cícero, quando César mandava levantar as estátuas de Pompeu: “É levantando as estátuas do teu inimigo que tu consolidas as tuas próprias estátuas”.
Ufa! É preciso muito desprendimento. Mas se não pensarmos assim, nem os pequenos acertos lograremos.
Epílogo
Uma curiosidade. Em outro dos artigos reunidos, O passado, o presente e o futuro da literatura, Machado de Assis trata do descompasso entre a riqueza material e intelectual da sociedade de seu tempo, e adverte:
A sociedade atual não é decerto compassiva, não acolhe o talento como deve fazê-lo. Compreendam-nos! Não somos inimigos encarniçados do progresso material. (...) O que nós queremos, o que querem todas as vocações, todos os talentos da atualidade literária, é que a sociedade não se lance exclusivamente na realização desse progresso material, magnífico pretexto de especulação, para certos espíritos positivos que se alentam no fluxo e refluxo das operações monetárias. O predomínio exclusivo dessa realeza parva, legitimidade fundada numa letra de câmbio, é fatal, bem fatal às inteligências; o talento pede e tem também direito aos olhares piedosos da sociedade moderna: negar-lhos é matar-lhes todas as aspirações, é nulificar-lhe todos os esforços aplicados na realização das idéias mais generosas, dos princípios mais salutares, e dos germens mais fecundos do progresso e da civilização.
Lendo isso agora, em Santos, no dia 12 de janeiro de 2010, não dá para não se lembrar do pré-sal e do desafio de converter riqueza em valor ou, aproveitando a sugestão do texto, letras de câmbio em literatura.
Referências
Machado de Assis. O ideal do crítico. Coleção Sabor Literário. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.