Sexta, 19 Abril 2024

No primeiro texto que publiquei em Porto Literário, Três poemas chegam no porto de Santos, mostro como três poetas distintos, Pablo Neruda, Elizabeth Bishop e Blaise Cendrars cantam a entrada no canal do estuário santista. Mais de quatro anos depois, vamos explorar hoje e na próxima semana Cendrars, autor de Chegada a Santos. Ele visitou o Brasil em 1924 a convite dos modernistas e esteve por São Paulo, Rio de Janeiro e cidades históricas de Minas Gerais ao lado de, entre outros, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, que acabou ilustrando Feuilles de Route, livro de Cendrars de publicado no mesmo ano que contém esse e outros poemas sobre sua passagem pelo Brasil.

 

Havia conhecido o poema por meio do site PortoCidade, da Unisanta. Na bibliografia do site, temos a informação de que o poema foi extraído do livro Folhas de viagens sul-americanas, publicado pela editora da Universidade Federal do Pará em 1991, com tradução, encontrei eu no Google, de Sergio Wax. A tradução leva a preposição “em” (Chegada em Santos), mas hoje vamos mostrar Chegada a Santos, tradução feita por Patrícia Galvão, a Pagu, para A Tribuna, e publicada no jornal santista em 9 de setembro de 1956.

 

O 2º Caderno deste domingo de mais de 50 anos atrás traz a manchete “Nove poemas de Blaise Cendrars” e a linha fina (subtítulo no jargão jornalístico) “Itinerário lírico de Santos a São Paulo”. Ali, Patrícia Galvão apresenta e traduz para a primeira vez ao português uma série de poemas do Feuilles de Route, os quais contam a trajetória do poeta desde sua chegada ao porto até a capital do Estado, passando por Guarujá e pela Serra do Mar. Devo a descoberta da série a minha companheira, a jornalista Márcia Rodrigues da Costa, que estuda a atuação de Pagu como crítica cultural em A Tribuna. O texto encontrado está no arquivo do jornal.

 

Vale registrar que os leitores de A Tribuna na virada da década de 50 para 60 contavam com traduções de autores ainda não publicados no Brasil. Entre outros, Patrícia Galvão traduziu para o público santista (como antes havia feito para os leitores do Diário de S. Paulo) Kafka, Dostoievsky, Octavio Paz e James Joyce, além de ter apresentado novidades como Fernando Pessoa (ainda não difundido por aqui), Arrabal, Clarice Lispector e Fernando Sabino, sem contar que esse artigo de 1956 adianta a temática deste Porto Literário. A crítica e tradutora informa o leitor de que o livro de Cendrars é dedicado aos modernistas que o acompanharam (Oswald de Andrade, em contrapartida, dedica Pau Brasil, de 1925, a Cendrars, “por ocasião da descoberta do Brasil”). Pagu apresenta o autor da seguinte maneira, ligando-o diretamente aos modernistas brasileiros:

 

Dois anos depois da Semana de Arte Moderna de São Paulo, partir de Le Havre para o Brasil, ou melhor, para Santos, o poeta Blaise Cendrars, um dos nomes da nova poesia francesa, um homem que permaneceu indivíduo entre as correntes, porque pertencia a todas sem filiar-se a nenhuma. Da velha antologia do editor Kra, de Paris, destaco algumas linhas curiosas para informar que Cendrars, nascido em 1887, e que começou a publicar livros em 1909, fez poesia em sentido mundial e trouxe ao Brasil também a sua informação preciosa sobre a renovação que se processava.

 

Agora, os nove poemas traduzidos por Patrícia Galvão:

 

CHEGADA A SANTOS

Penetramos entre montanhas que se fechavam atrás de nós.

Não se sabe mais onde está o horizonte

Olha o piloto que sobe uma escada é um mestiço de grandes olhos

Entramos numa baía interna que acaba num desfiladeiro.

À esquerda há uma praia deslumbrante na qual circulam automóveis

à direita a vegetação tropical muda dura cai no mar como um Niágara de clorofila

Quando se passa um pequeno forte português risonho que nem uma capela de um subúrbio de Roma e cujos canhões são como poltronas daquelas que a gente tem vontade de sentar à sombra serpenteia-se uma hora no desfiladeiro cheio de água terrosa

As margens são baixas

A da esquerda plantada de rizóforos e bambus gigantes em torno de casebres vermelhos e negros ou azuis e negros dos negros

A da direita desolada pantanosa cheia de palmeiras espinhosas

O sol é atordoante

 

A BOMBORDO

O porto

Nem um ruído de máquina, nenhum apito nenhuma sirene

Nada se move não se vê nenhum homem

Nenhuma fumaça sobe nenhum penacho de vapor

Insolação de um porto inteiro

Se há sol cruel e o calor que cai do céu e que sobre da água o calor deslumbrante

Nada se move

Contudo ali está uma cidade ativa uma indústria

Vinte e cinco cargueiros pertencentes a dez nações estão no cais e carregam café

Duzentos guindastes trabalham silenciosamente

(Com o binóculo se distinguem as sacas de café que viajam nos passeios rolantes e os monta-cargas contínuos

A cidade está escondida atrás dos hangars planos e dos grandes armazéns retilíneos de teto ondulado)

Nada se move

Esperamos horas

Ninguém aparece

Nenhuma barca se destaca da margem

Nosso navio parece derreter de minuto a minuto e submergir lentamente no calor espesso de se empenar e de ir mesmo a pique

 

PRAIA DO GUARUJÁ

São quatorze horas estamos enfim no cais

Descobri um pacote de homens à sombra na sombra amontoada de um guindaste

Certificados médicos passaporte alfândega

Desembarco

Não estou sentado no automóvel que me leva mas no calor mole espesso acolchoado como uma carruagem

Meus amigos que me esperam desde as sete horas da manhã no cais ensolarado têm apenas a força de me apertar a mão

Toda a cidade ressoa com os jovens claxons que se saúdam

Jovens claxons que nos reanimam

Jovens claxons que nos são fome

Jovens claxons que nos levam para almoçar na praia do Guarujá

Num restaurante cheio de aparelhos papa-níqueis elétricos pássaros mecânicos aparelhos mecânicos que leem as linhas das mãos gramofones que tiram a sua sorte e onde se come a boa velha cozinha brasileira saborosa com toda a pimentada indígena

 

PAISAGEM

A terra é vermelha

O céu é azul

A vegetação é de um verde escuro

Essa paisagem é cruel dura triste não obstante a variedade infinita de formas vegetativas

Não obstante a graça inclinada das palmeiras e os ramos fabulosos das grandes árvores em flores flores de quaresma.

 

PARANAPIACABA

Paranapiacaba é a Serra do Mar

Aqui é que o trem é levantado pelos cabos e transpõe a dura montanha em várias secções

Todas as estações são suspensas no vácuo

Há muitas quedas de água e grandes trabalhos de arte foram necessários para escorar em toda a parte a montanha que se pulveriza

Porque a Serra é uma montanha podre como “les Rognes” sobre Bionnasay, mas les Rognes cobertos de florestas tropicais

As ervas más que crescem nos declives, nas valas entre os caminhos são sempre plantas raras como não se vê em Paris a não ser nas vitrinas das grandes horticulturas

Numa estação, três mulatos indolentes estavam estragando as plantas.

 

BANANAL

Damos ainda uma volta de carro antes de tomar o trem

Atravessamos bananais empoeirados

Matadouros fétidos

Um subúrbio miserável e uma brenha florescente

Depois desfilamos por uma montanha de terra vermelha e azul negro casas de madeira construídas sobre jazigos abandonados.

Duas cabras anãs pastam as plantas raras que crescem à beira da estrada duas cabras anãs e um porquinho azul.

 

SÃO PAULO RAILWAY CO.

O rápido está sob pressão

Nós nos instalamos num Pullman pompeiano semelhante aos confortáveis vagões de das estradas de ferro egípcias

Estamos em redor de uma mesa de bridge em amplas poltronas de vime

Há um bar lá no fim do vagão onde bebo o primeiro café de Santos

No início cruzamos com um comboio de carros brancos que tinham esta inscrição:

Caloric Cy.

Está falando.

Sufoco.

 

PIRATININGA

Quando se transpõe a crista da Serra e quando se sai da neblina que a encapota o local fica menos desigual

Acaba não sendo mais do que uma vasta planície ondulada limitada ao norte por montanhas azuis.

A terra é vermelha

Essa planície mostra bosquezinhos de pouca altura de uma extensão também pouco considerável próximos uns dos outros em meio de uma relva quase rasa

É difícil determinar se há mais terras cobertas de bosque do que pastos

Fica uma espécie de marchetaria de dois matizes de verde bem diferentes e bem distintos

A da erva de uma cor terna

A do bosque de uma cor escura.

 

SÃO PAULO

Enfim eis usinas um subúrbio um gentil bondinho

Fios elétricos

Um rua populosa com gente que vai fazer as suas compras da tarde

Um gasômetro

Enfim se chega na estação

São Paulo

Penso estar na estação de Nice

Ou desembarcar em Charring-Cross em Londres

Encontro todos meus amigos

Bom dia

Sou eu.

 

Na semana que vem, vamos comparar o itinerário lírico de Cendrars com o de outros textos que já passaram pelo Porto Literário.

  

Referências

Patrícia Galvão. Nove poemas de Blaise Cendrars. A Tribuna, 2º Caderno, 09/09/1956.

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