Pouco antes do Realismo Fantástico de Gabriel García Marquez e seus Cem anos de Solidão, que explodiram para o mundo junto com o boom da literatura latino-americana nos anos 60, a escrita de ficção da América de fala hispânica já contava com um autor cujo texto (forma) trazia para a ficção a identidade do subcontinente (conteúdo). Era o cubano Alejo Carpentier (1904-1980) e seu Real Maravilhoso. Nada melhor que a recente publicação no Brasil de Os passos perdidos para mais uma conversa sobre as relações entre História e Literatura.
O livro de 1953 saiu no final de 2008 pela editora Martins com tradução de Marcelo Tápia e conta a história de um musicólogo nascido em um país amazônico que migrou ainda adolescente para Nova York, onde deixa de falar o espanhol. Já na meia idade, trabalhando na área de publicidade, ele é convidado por um museu para explorar o Rio Orinoco e, na volta, levar instrumentos musicais indígenas para os Estados Unidos. Em contato com o país nativo, sua capacidade de criação, até o momento desgastada pela busca do sustento na publicidade, volta e, em meio a enchentes e intempéries, ele compõe um réquiem.
A narrativa tem o formato de um diário, mas a linguagem é literária, na qual Carpentier, como também fazia Lezama Lima, exercita o Real Maravilhoso, no qual os dois escritores cubanos tomam a expressão barroca como a mais adequada à identidade latino-americana, ao mesmo tempo em que serve como fonte de inovação estética, daí sua modernidade. No Real Maravilhoso, o barroco mantém uma tensão viva entre integrantes díspares de uma cultura formada por fragmentos de outras culturas. Como se o barroco também traduzisse de alguma forma o choque de civilizações e o entremeamento de culturas provocados pela conquista espanhola e portuguesa.
A diferença em relação ao Realismo Fantástico é que este, ainda usando a obra de García Marquez como referência, nos mostra formigas devorando uma casa ou pessoas que vivem amarradas a uma árvore ou que não se alimentam, etc; já o Real Maravilhoso considera a própria natureza do continente maravilhosa e, a partir deste fundamento, toma o barroco como o melhor reflexo da complexidade natural e cultural da região. Um exemplo é o registro de 15 de junho do diário do narrador de Os passos perdidos:
Quando chegamos a Puerto Anunciación – à cidade úmida, sempre assediada por vegetações com as quais se travava, havia centenas de anos, uma guerra sem vantagens – compreendi que havíamos deixado para trás as Terras do Cavalo para entrar nas Terras do Cão. Ali, atrás dos últimos telhados, erguiam-se as primeiras árvores da selva ainda distante, sua linha de frente, suas sentinelas soberbas, mais obeliscos que árvores, ainda esparsas, afastadas umas das outras, sobre a vastidão fragosa do matagal enredado de ervas daninhas, cuja rasteira feracidade encobria as trilhas em uma noite.
As Terras do Cavalo ficam para trás porque não são mais necessárias montarias em um “mundo já sem caminhos”, no qual o olfato dos cães passa a ser mais útil ao humano. Neste e em outros livros, Carpentier e Lezama Lima escrevem em ficção uma versão barroca da história latino-americana que se configura como imagem e se constrói ela mesma por imagens, tendo o poético e a linguagem metafórica como partes do trabalho de reconstrução histórica.
Referências
Alejo Carpentier. Os passos perdidos. Tradução Marcelo Tápia. São Paulo: Martins, 2008.