O porto geralmente é um lugar de transição entre dois mundos, é o último lugar de onde se parte ou o primeiro da terra a que se chega. Mas o porto é também o lugar onde se constata a mudança que ocorre na terra natal. Essa é a função narrativa do porto no poema Romance Sonâmbulo, de Federico García Lorca, que se inicia com o famoso verso “Verde que te quero verde” (a tradução é de Afonso Felix de Sousa):
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana,
as coisas estão mirando-a
e ela não pode mirá-las.
A mulher que olha o horizonte e nada vê, como a narrativa nos mostra na estrofe seguinte, espera o retorno de seu homem, que volta dos combates da Guerra Civil espanhola:
A figueira raspa o vento
a lixá-lo com as ramas,
e o monte, gato selvagem,
eriça as piteiras ásperas.
Mas quem virá? E por onde?...
Ela fica na varanda,
verde carne, tranças verdes,
ela sonha na água amarga.
Os portos de Cabra aparecem em apenas em um verso, mas é a partir dele, em uma conversa com outro homem, que o regressante percebe que sua terra não é mais a mesma:
— Compadre, dou meu cavalo
em troca de sua casa,
o arreio por seu espelho,
a faca por sua manta.
Compadre, venho sangrando
desde as passagens [puertos, no original] de Cabra.
— Se pudesse, meu mocinho,
esse negócio eu fechava.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
Os dois últimos versos são a constatação em poesia das conseqüências de uma guerra civil. A situação do homem que conversa com o viajante, de não ser mais o dono de sua casa, se repete no final do poema, quando o mesmo ocorre com a mulher que o espera.
Sobre a face da cisterna
balançava-se a gitana.
Verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Ponta gelada de lua
sustenta-a por cima da água.
A noite se fez tão íntima
como uma pequena praça.
Lá fora, à porta, golpeando,
guardas-civis na cachaça.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar.
E o cavalo na montanha.
Mesmo curta, a passagem com o porto é simbólica. É a partir dele que se percebe a irreversibilidade dos fatos históricos.
Epílogo
Em homenagem ao centenário de Poemas e canções, o site Artefato Cultural começou em 17 de setembro a publicar a obra de Vicente de Carvalho prefaciada por Euclides da Cunha. Já que até agora nenhuma editora parece ter se interessado na homenagem, ficam aqui os parabéns ao site e sua editora, Cristiane Carvalho.
Referências
Federico García Lorca. Romance Sonâmbulo. In: Antologia Poética. Rio de Janeiro: Leitura S.A, 1966.
Vicente de Carvalho em Porto Literário:
A atualidade de Vicente de Carvalho e de seus poemas e canções, 15/01/2008.
Euclides da Cunha, o autor de Os Sertões, encontra Vicente de Carvalho, o poeta do mar, 22/01/2008.
Vicente de Carvalho, cineasta, 29/01/2008.