Domingo, 29 Dezembro 2024

O porto geralmente é um lugar de transição entre dois mundos, é o último lugar de onde se parte ou o primeiro da terra a que se chega. Mas o porto é também o lugar onde se constata a mudança que ocorre na terra natal. Essa é a função narrativa do porto no poema Romance Sonâmbulo, de Federico García Lorca, que se inicia com o famoso verso “Verde que te quero verde” (a tradução é de Afonso Felix de Sousa):

 

Verde que te quero verde.

Verde vento. Verdes ramas.

O barco vai sobre o mar

e o cavalo na montanha.

Com a sombra pela cintura

ela sonha na varanda,

verde carne, tranças verdes,

com olhos de fria prata.

Verde que te quero verde.

Por sob a lua gitana,

as coisas estão mirando-a

e ela não pode mirá-las.

 

A mulher que olha o horizonte e nada vê, como a narrativa nos mostra na estrofe seguinte, espera o retorno de seu homem, que volta dos combates da Guerra Civil espanhola:

 

A figueira raspa o vento

a lixá-lo com as ramas,

e o monte, gato selvagem,

eriça as piteiras ásperas.

Mas quem virá? E por onde?...

Ela fica na varanda,

verde carne, tranças verdes,

ela sonha na água amarga.

 

Os portos de Cabra aparecem em apenas em um verso, mas é a partir dele, em uma conversa com outro homem, que o regressante percebe que sua terra não é mais a mesma:

 

— Compadre, dou meu cavalo

em troca de sua casa,

o arreio por seu espelho,

a faca por sua manta.

Compadre, venho sangrando

desde as passagens [puertos, no original] de Cabra.

— Se pudesse, meu mocinho,

esse negócio eu fechava.

No entanto eu já não sou eu,

nem a casa é minha casa.

 

Os dois últimos versos são a constatação em poesia das conseqüências de uma guerra civil. A situação do homem que conversa com o viajante, de não ser mais o dono de sua casa, se repete no final do poema, quando o mesmo ocorre com a mulher que o espera.

 

Sobre a face da cisterna

balançava-se a gitana.

Verde carne, tranças verdes,

com olhos de fria prata.

Ponta gelada de lua

sustenta-a por cima da água.

A noite se fez tão íntima

como uma pequena praça.

Lá fora, à porta, golpeando,

guardas-civis na cachaça.

Verde que te quero verde.

Verde vento. Verdes ramas.

O barco vai sobre o mar.

E o cavalo na montanha.

 

Mesmo curta, a passagem com o porto é simbólica. É a partir dele que se percebe a irreversibilidade dos fatos históricos.

 

Epílogo

Em homenagem ao centenário de Poemas e canções, o site Artefato Cultural começou em 17 de setembro a publicar a obra de Vicente de Carvalho prefaciada por Euclides da Cunha. Já que até agora nenhuma editora parece ter se interessado na homenagem, ficam aqui os parabéns ao site e sua editora, Cristiane Carvalho.

 

Referências

Federico García Lorca. Romance Sonâmbulo. In: Antologia Poética. Rio de Janeiro: Leitura S.A, 1966.

 

Vicente de Carvalho em Porto Literário:

A atualidade de Vicente de Carvalho e de seus poemas e canções, 15/01/2008.

Euclides da Cunha, o autor de Os Sertões, encontra Vicente de Carvalho, o poeta do mar, 22/01/2008.

Vicente de Carvalho, cineasta, 29/01/2008. 

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