De algumas atrações culturais deste final de semana em São Paulo, duas vão acabar em diálogo aqui no Porto Literário. São as exposições Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra “de arte”, no Museu de Arte Moderna (MAM), no Parque Ibirapuera, e Emoção Art.ficial 4.0 – Emergência!, no Itaú Cultural. Um fio que une as duas é a aleatoriedade, isto é, o acaso na confecção de obras de arte.
Antes de tudo, uma apresentação das duas exposições:
No MAM, o público brasileiro pode apreciar a maior exposição de Marcel Duchamp (1887-1968) já realizada na América Latina. Estão lá o os ready-made (o que já está pronto) Fonte e Roda de Bicicleta, ícones de seu trabalho de embaralhar as idéias sobre o que arte, não só porque não passam de um mictório e de uma roda de bicicleta, mas também porque questionam a arbitrariedade dos museus. Em texto do folheto da exposição assinado por Andréia Polo, o conceito de ready-made é explicado da seguinte forma:
[Duchamp] apropriou-se de objetos manufaturados, como uma pá para recolher neve, um porta-garrafas, uma roda de bicicleta, um mictório de porcelana. Duchamp deu a esses objetos um estatuto artístico apenas pelo ato de tirá-los do contexto original e destituí-los de funcionalidade. Ao escolhes um mictório e dar-lhe o título Fountain [Fonte] (1917), esse objeto saía do mundo das coisas insignificantes e entrava numa galeria, um templo da arte. Transformava-se, assim, numa obra artística.
No mesmo folheto, Andréia Polo sugere a realização de atividades educativas a partir de um dos procedimentos inovadores de Duchamp, o uso do acaso, ao deixar cair da altura de seu peito um pedaço de barbante e aproveitava as sugestões de formas onduladas do material no chão para realizar novos trabalhos.
Quase um século depois da fonte de Duchamp, o aleatório é um dos componentes principais dos trabalhos reunidos até o último domingo no Itaú Cultural, como Performative Ecologies, de Ruairi Glynn, em que quatro robôs com luzes em suas pontas realizam movimentos ao reconhecerem padrões faciais, ou Canções submersas, de Vivian Caccuri, em que os movimentos de quatro carpas em um aquário interferem em músicas executadas em uma das salas. Para ampliar a aleatoriedade, os visitantes podem conectar seus i-pods ao mecanismo e ouvir a interferência das carpas nas suas músicas preferidas.
Epílogo
Apesar das diferenças técnicas (um barbante num caso, programas de computador em outro), as obras de Duchamp (que dão corpo ao modernismo) e as expostas em Emoção Art.ficial 4.0 – Emergência! (que continuam a tradição modernista) se irmanam no uso do aleatório e do acaso como ferramenta criativa.
Entre as duas pontas do barbante, foi o compositor santista Gilberto Mendes quem também trabalhou com a criação aleatória. É dele a peça Blirium C9, de 1965, em que os interpretes devem escrever suas próprias partituras a partir de instruções do compositor, como a execução de seqüências ou pausas. O resultado é que a música soa diferente a cada apresentação.
A mesma técnica é usada em Escorbuto – Cantos da Costa, adaptação do livro homônimo de Flávio Viegas Amoreira realizada em 2005, em que os músicos executam aleatoriamente um mesmo trecho musical, tendo como fundo a narração de trechos do livro, um pau-de-chuva e duas bailarinas, numa sucessão movimento e imobilidade. A música foi executada duas vezes na semana passada durante apresentações da 43ª edição do Festival Música Nova, criado pelo próprio Mendes.
Referências
Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra “de arte”. Até 21 de setembro no Museu de Arte Moderna, Parque do Ibirapuera, portão 3, s/nº.
http://www.mam.org.br/2008/portugues/default.aspx
Emoção Art.ficial 4.0 – Emergência!. De 2 de julho a 14 de setembro no Itaú Cultural.
http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2825
A Odisséia Musical de Gilberto Mendes. Direção, produção, roteiro e edição: Carlos de Moura Ribeiro Mendes. Berço Esplêndido, sem data.
