Domingo, 29 Dezembro 2024

As notas

Presente nas duas últimas edições da coluna, o formato dessas notas literárias faz eco às Notas de Literatura de Theodor W. Adorno, que muitos conhecem pela participação na Escola de Frankfurt, corrente do pensamento fundamental do pós-guerra.

 

Mas longe daquele clima pesado da crítica cultural da Escola (forjado nas tempestades da Segunda Guerra), a crítica literária de Adorno reunida neste volume parece que é aquela escrita com a alegria da vida. Porto Literário tem como modelo boa parte dessa fantástica obra.

 

Em sua própria Nota, o tradutor do original alemão para o português, Jorge de Almeida, registrou a ambivalência da palavra: se na escrita alfabética nota é um registro, uma anotação; numa partitura, por sua vez, as notas são musicais. O tradutor destaca o estilo musical do texto original, que para os próprios alemães “soa quase como língua estrangeira”:

 

Esse estranhamento, como Adorno ressalta (...), é uma qualidade dos escritores que efetivamente refletem sobre a linguagem, na medida em que se recusam a tomá-la como algo simplesmente dado, mas sim reconhecem em cada conceito, em cada estrutura gramatical, as diversas possibilidades e camadas de sentido ali sedimentadas pela história.

 

Por isso tudo, o estilo de Adorno, ainda como analisa o tradutor, é “ao mesmo tempo fluente e escarpado”, “coerente com o espírito do ensaio”.

 

O Ensaio

Ensaio é a palavra-chave para entender esses textos de Adorno, em que o reordenamento das coisas vale mais que a originalidade (ainda andando pelas ladeiras da ambigüidade, essa definição presta também para os ensaios musicais). Mantendo-se análogo ao seu significado, o próprio gênero do ensaio ainda não encontrou forma definitiva e – e agora cito Adorno – “não conseguiu deixar para trás o caminho que leva à autonomia”. Isso é discutido no texto de abertura, O ensaio como forma (leia em Resenhas de textos que não existem a definição de ensaio de George Lukács).

 

Essa lição de reordenamento das coisas está por trás de muitos textos aqui do Porto Literário, como os da série que trata do ciclo romance de identidade portuária, uma categoria de análise que criei em meus estudos para poder comparar obras como os romances Navios Iluminados, Cais de Santos, Agonia na Noite, Barcelona Brasileira e Os Vira-latas da madrugada. Ainda que já houvesse comparado essas obras anteriormente, a idéia de trabalhar com a expressão ciclo, por exemplo, nada mais é que um ensaio sobre uma consideração de Narciso de Andrade sobre o ciclo do romance de Santos num artigo que escreveu em 1993 sobre Adelto Gonçalves, autor do quarto e do quinto romances citados acima. É do ensaio dar brilho novo às idéias, mantê-las vivas.

 

A música

Para os que gostam de saber como funcionam as histórias e narrativas, os ensaios são suculentos: temos sobre o gênero épico, sobre o narrador no romance contemporâneo, a lírica, uma revisão do surrealismo, a representação do artista e até um sobre os sinais de pontuação.

 

Chamado exatamente Sinais de pontuação, esse ensaio defende a utilização da vírgula, do ponto-e-vírgula, dos dois pontos e de todos os sinais possíveis. Isso porque pretende cultivar a diversidade das frases (como num tema de jazz). Nesse texto, Adorno ensina mais sobre a construção das frases do que qualquer palestra de como falar bem em público:

 

Em nenhum de seus elementos a linguagem é tão semelhante à música quanto nos sinais de pontuação. A vírgula e o ponto correspondem à cadência interrompida e à cadência autêntica. Pontos de exclamação são como silenciosos golpes de pratos, pontos de interrogação são acentuações de frases musicais no contratempo, dois-pontos são acordes de sétima da dominante; e a diferença entre vírgula e ponto-e-vírgula só será sentida corretamente por quem percebe o diferente peso de um fraseado forte e fraco na forma musical.

 

Ele advoga também as diferenças de sentidos que há nas formas de ressaltar uma oração do restante do período. Deixar uma oração entre vírgulas, por exemplo, demonstra uma explicação; entre traços, um destaque ou uma interrupção; entre parêntesis, uma digressão, um comentário.

 

Ele fala da função da barra transversal [/] na separação de versos em textos de prosa (“Com tanto navio para partir / minha saudade não sabe onde embarcar”), função que não daria certo para a forma abrupta do travessão moderno [–]; Adorno conta também a história da transformação do ponto-de-exclamação de ênfase pessoal do autor em “gesto de autoridade” e do rebaixamento do uso das reticências [...] de indução à diversidade de sentidos à máscara para falta de assunto.

 

 

 

 

 

 

 

Detalhe da capa de O Senhor Calvino, de Gonçalo M. Tavares: um homem feito de sinais de pontuação

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma das melhores partes é quando recomenda o uso das aspas em citações ou retirada da palavra de seu contexto, nunca como “meio de ironia”, já que a colocação do sinal iria contra toda a idéia da ironia, falar uma coisa dizendo outra. 

 

A indiferença diante da expressão lingüística, presente no ato mecânico de delegar a intenção a um clichê tipográfico, levanta a suspeita de que até mesmo a dialética, que constrói o conteúdo da teoria, foi paralisada, enquanto o objeto foi subsumido do alto, sem negociação. Onde há algo a ser dito, a indiferença quanto à forma literária sempre indica uma dogmatização do conteúdo. O gesto gráfico desse dogma é o veredicto cego das aspas irônicas. 

 

Quando se pode dizer qualquer coisa de qualquer forma, o mundo se torna um lugar mais autoritário, pobre e triste. Cada frase necessita de sua forma justa; cada história merece sua própria forma de ser contada, e os sinais de pontuação – todos eles, os das letras e os das músicas – estão aí para ajudar os narradores nisso.

 

Referências

Theodor W. Adorno. Notas de Literatura I. Tradução e apresentação Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34 e Duas Cidades, 2003.

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