Um documento precioso sobre a história do litoral paulista foi publicado em 2008. É a tradução do manuscrito de Thomas Cavendish, corsário inglês que em 1591 saqueou e queimou as vilas de Santos e São Vicente, sobre os infortúnios da viagem que, usando o litoral da capitania de São Vicente como ponto de abastecimento, buscava alcançar o objetivo da viagem, ultrapassar o Estreito de Magalhães, no extremo sul do continente, e atingir o Oceano Pacífico.
Além do texto do corsário, escrito já na Inglaterra em 1592 para o amigo e testamenteiro Tristam Gorges, a edição da Ottoni, organizada pelo doutor em Estudos Lingüísticos e Literários em Língua Inglesa Paulo Edson, traz também introdução e notas explicativas. Assim, qualquer um que não tenha qualquer familiaridade com a história dos piratas ingleses no Brasil poderá se preparar para entrar no território do relato de Cavendish. Como bônus para os pesquisadores da língua e das traduções, o texto está em edição bilíngüe.
Apesar de saqueada e tomada por dois meses, a conquista da vila de Santos não parece um grande feito aos olhos do pirata. A ilha de São Vicente, assim como as ilhas de São Sebastião (atual Ilhabela) e Ilha Grande, no Rio de Janeiro, apesar de serem alvos dos corsários ingleses contra os espanhóis (naquele momento as coroas ibéricas estavam unificadas sob Felipe II, inimigo da coroa inglesa), não eram para Cavendish mais que um entreposto para a preparação de seu objetivo principal, atingir o Pacífico, assim como havia feito em 1586, quando chegou ao estado da Califórnia, então colônia espanhola, onde saqueou a caravela Santa Ana, com seus 600 tonéis carregados de ouro, pérolas, cetim e seda. Dali, ele saqueia portos e vilarejos em Java, na Índia e nas Filipanas, de onde retorna pelo Cabo da Boa Esperança (extremo sul da África) para a Inglaterra, enriquecido.
O próprio manuscrito, ao deixar de lado a tomada da vila, deixa claro a inutilidade da conquista em comparação ao fracasso da passagem para o Pacífico. O relato de Cavendish, como aponta o pesquisador, “para informar os motivos de sua falha”, lançando a culpa sobre seus companheiros e tripulação.
Cavendish julgou o mundo perdido; o sucesso de seu projeto fugia a seu controle. Assim, lançou a culpa de seus fracassos em seus companheiros.
As intenções do corsário de justificar ao amigo seu infortúnio e o estado psicológico em que o texto foi escrito surgem logo no início:
Os insucessos desta tão desafortunada ação e os amargos momentos dela, recaem pesadamente sobre mim, uma vez que com muita dor sou capaz de escrever estas parcas linhas muito menos lhe fazer discurso de todos os acontecimentos adversos que me recaíram nesta viagem, o último é minha morte.
Sobre Santos e São Vicente, o relato se concentra durante a viagem de retorno, quando, desgostoso, Cavendish aceita a sugestão de seus subordinados e volta para terras “brasílicas”, onde seus navios poderiam refazer seus estoques de víveres e recuperar velas e equipamentos. Mas ali, calejados pela ocupação recente, os colonos portugueses e índios locais oferecem maior resistência e matam um grupo de 25 ingleses, mandados à terra para reconhecer o terreno. Apenas um dos integrantes do grupo, um índio que havia se unido ao grupo durante a ocupação, volta para o navio.
Na manhã seguinte vi um índio vir em direção ao mar e acenar para o navio. Nós, desejosos por notícias, fizemos uma balsa pois não dispúnhamos de nenhum barco, enviamo-la à margem e colocamos o índio a bordo. Quando o vimos, percebemos que ele era o nosso próprio índio, que havia escapado e tinha ferimentos em 3 partes do corpo. Ele nos contou que todo o resto de nossos homens haviam sido mortos por 300 índios e 80 portugueses que à noite os atacaram repentinamente.
Em represália, Cavendish e seus piratas destroem tudo que podem antes de embarcar novamente para a Ilha de São Sebastião:
Todavia, fomos a terra e causamos grande destruição às casas de suas fazendas e nos apoderamos de uma quantidade de suprimentos frescos. Aquele local não era para nós, levando em conta que nossos navios não estavam aptos a chegarem à cidade deles e além disso, nossas extremas necessidades nos forçavam a procurar um caminho para reabastecimento.
Depois da amargura de Cavendish em não ter cruzado Magalhães, semana que vem Porto Literário traz o relato de Anthony Knivet, integrante da tripulação que registrou o ataque à vila de Santos no natal de 1591.
Referência
O corsário de Ilhabela. O manuscrito do corsário Thomas Cavendish que em 1591 se refugiou em Ilhabela e saqueou a vila de Santos. Organização, introdução e notas de Paulo Edson. Tradução de Paulo Edson e John Milton. Itu: Ottoni, 2008.