Três poetas e uma puta cruzam os desertos de Sonora. A bordo de um Impala a 150 km/h pelas estradas do norte do México desde a capital do país, eles fogem do cafetão de Lupe. Essa é a história da terceira parte de Os detetives selvagens, romance de Roberto Bolaño de 1999 eleito em 2006 o livro chileno mais importante dos últimos 25 anos.
Os tais detetives selvagens são Arturo Belano e Ulises Lima, dois jovens poetas dos anos 70, criadores do movimento real-visceralista. Eles procuram indícios da vida de Cesárea Tinajero, uma poeta vanguardista dos anos 20 que deixou a Cidade do México para viver no deserto. Lupe está com eles porque tinham uma amiga em comum e a viagem de investigação/fuga lhe cai bem no momento. O quarto integrante do grupo é García Madero, um eruditíssimo poeta de 17 anos que havia se unido recentemente ao grupo e que parte com os detetives e Lupe, com quem tem um caso, para o deserto.
Imagem: Roberto Bolaño retratado no jornal El País, da Espanha
(www.elpais.com)
A busca literária empreendida por Belano e Lima é uma metáfora da própria literatura, como já foi dito por muitos críticos que analisaram o romance. Seus livros são recheados de escritores que comentam outros escritores, que se reúnem para falar mal dos outros, que circulam pelas ruas, que entram em cafés, enfim, que interagem com a vida social. O que facilmente poderia ser confundido com pedantismo e um joguinho de citações, em Bolaño é tratado de forma divertida, ainda que profundamente – exemplo é Noturno do Chile, em que um jovem escritor é convocado pela junta militar para dar aulas de marxismo ao ditador Pinochet e a um punhado de generais.
Acompanhamos a ação por meio do diário de Madero, que reconstitui a empreitada do grupo atrás de Cesárea. Vemos ali uma das “brincadeiras literárias” de Bolaño, que consiste em por lado a lado, por meio de adivinhas, dois discursos distintos sobre a linguagem: a análise teórica e a gíria.
Tudo começa em 2 de janeiro de 1976, quando o autor do diário tenta divertir o grupo com perguntas sobre as formas dos versos. Madero pergunta a Lima e Belano, e também a Lupe, o que são versos livres – essa eles acertam fácil –, tetrásticos, sextinas, glicônicos, pitiâmbicos, miniambos, hometeleutos, satúrnios e quiamos, além de figuras como epanortose e paragoge, além de outros termos da análise dos versos.
A cena já é boa porque as perguntas eruditas acontecem durante uma perseguição no deserto, mas a coisa melhora estupendamente quando Lupe vira a mesa e começa ela mesma a interrogar os três poetas real-visceralistas:
- Agora é sua vez, sabe-tudo: o que é um prix?
- Um fino de marijuana – Belano respondeu sem se virar.
- E o que é um carranza?
- Um velho – Belano respondeu.
- E lurias?
- Essa eu respondo – eu disse, pois todas as perguntas eram dirigidas e mim.
- E então? – Belano disse.
- Não sei – respondi, depois de pensar um instante.
Mais que a reviravolta de Lupe, um dos trechos mais saborosos do livro é a simetria entre a ambivalência de sentido tanto de um termo literário como de uma gíria das ruas. Começamos com Madero respondendo o que é um satúrnio:
– Fácil. Na poesia latina arcaica, um verso de interpretação duvidosa. Alguns crêem que tem natureza quantitativa, outros acentual. Se se admite a primeira hipótese, o satúrnio pode ser analisado como um dímetro iâmbico e um itifálico, embora apresente outras variantes. Se se aceita a acentual, é possível dizer que ele é formado por dois hemistíquios, o primeiro com três acentos tônicos, o segundo com dois.
Na vez de Lupe, a expressão ambivalente é “dar cuello”:
– A mesma coisa que dar caña – Lupe disse –, só que é diferente. Quando dão cuello em alguém, matam a pessoa; quando dão caña podem matá-la, mas também podem enrabar a pessoa. – Sua voz soou tão sinistra quanto se houvesse dito antibaquio ou palimbáquio.
O jogo de espelhos entre as duas linguagens “sinistras” – porque só são entendidas pelos que as freqüentam – ensina mais sobre democracia, riqueza e diversidade das línguas do que qualquer acordo ortográfico.
Epílogo
Na Virada Cultural de Santos, acontece às 15 horas do dia 18 encontro literário na Cadeia Velha, na Praça dos Andradas. Com o tema ‘Literatura Brasileira Hoje’, se reúnem os escritores Marcelino Freire, Marçal Aquino, Flávio Viegas Amoreira, Indigo e Marcelo Ariel. Porto Literário vai mostrar um pouco do que será conversado ali na próxima edição.
Referências
Roberto Bolaño. Os detetives selvagens. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.