Na coluna anterior, Cultura e ação por meio da literatura, iniciei uma demonstração de como a expressão do texto jornalístico pode se beneficiar da literatura, mais precisamente do mecanismo ficcional. Vimos como numa crônica, Machado de Assis se utiliza do diálogo entre animais, um dos gêneros ficcionais mais antigos da literatura, para tratar da escravidão no Brasil na década de 80 do século XIX.
I
Mas os recursos literários não se limitam à ficção, isto é, à invenção. As próprias escolhas narrativas determinam o alcance do texto jornalístico. Para exemplificar, vamos a outro caso de escritor que também foi jornalista, Gabriel García Márquez. Na reportagem Caracas sem água, ele trata dos efeitos da seca que atingiu a capital da Venezuela em 1958, a mais forte em quase oito décadas.
Como adiantei no texto anterior, o autor de Cem anos de solidão utiliza-se de um recurso dramático, a composição do personagem, para contar sua história. Não é o caso de dizer que Samuel Burkart, o homem que o repórter acompanha durante a seca, seja uma invenção, mas sim que seu perfil – um homem solteiro, engenheiro, ex-militar e estrangeiro – permite ao autor do texto oferecer ao leitor uma visão mais abrangente dos efeitos da seca do que poderia ao acompanhar, por exemplo, uma família.
E isso é simples: enquanto um chefe de família precisa se preocupar com filhos, esposa, sogra, cachorro, gato, galinha etc., um homem solteiro tem mais mobilidade. O primeiro tipo de personagem se enquadra em dramas sociais com um enredo que poderia incluir o sofrimento das crianças ou dos mais velhos, a emergência de conflitos familiares e por aí vai. Já o segundo, com toda sua capacidade de mobilidade e trânsito, oferece ao repórter uma perspectiva mais coletiva. Além disso, ao centrar a narrativa em um só personagem, a reportagem amplia a capacidade de identificação, fazendo o leitor entrar na história por meio das dificuldades de Burkart em conseguir fazer a barba todos os dias, um problema prosaico ainda que suficiente para o processo de identificação. Mas vamos ao texto (a tradução, peço desculpas, é do escrivão).
II
A reportagem começa com a apresentação do personagem e de seu problema:
Depois de escutar o boletim de rádio das 7 da manhã, Samuel Burkart, um engenheiro alemão que vivia sozinho em uma cobertura na Avenida Caracas, em San Bernardino, foi à venda da esquina comprar uma garrafa de água para fazer a barba.
Seguida pela apresentação do espaço e da situação:
Caracas parecia uma cidade fantasma. O calor abrasante dos últimos dias tinha cedido um pouco, mas no céu alto, de um azul denso, não se movia uma só nuvem. Nos jardins das quintas, na ilhota da Praça da Estrela, os arbustos estavam mortos. As árvores das avenidas, normalmente cobertas de flores nessa época do ano, estendiam ao céu seus galhos pelados.
Samuel Burkart teve que fazer fila na venda para ser atendido pelos dois comerciantes portugueses que falavam com a clientela sobre um mesmo tema, o tema único dos últimos quarenta dias que essa manhã havia estalado no rádio e nos jornais como uma explosão dramática: a água tinha se esgotado em Caracas.
Outra característica de Burkart, o fato de ser estrangeiro, dá ao narrador uma perspectiva de fora que permite a crítica do comportamento dos nativos frente à seca, como quando, alguns meses antes do esgotamento da água, mas com os alertas já dados, uma vizinha de Burkart ainda regava seu jardim todos os dias. Mais tarde, com a água racionada, essa mesma vizinha reclamaria do governo por não ter prevenido adequadamente a população. A experiência regressa do personagem também amplifica a emergência da situação:
Se dirigiu ao escritório, pensando que talvez em nenhum momento da guerra, nem quando esteve na retirada de África Korp, em pleno deserto, havia se sentido de tal modo ameaçado pela sede.
Um dos momentos da reportagem em que a mobilidade do personagem evidencia o momento coletivo ocorre quando Burkart decide deixar o carro em casa para ir ao trabalho.
Pela primeira vez em 10 anos Burkart foi a pé até seu escritório, situado a poucos passos do Ministério das Comunicações. Não se atreveu a usar o automóvel por medo de que se aquecesse. Nem todos os habitantes de Caracas foram tão precavidos. Na primeira bomba de gasolina que encontrou havia uma fila de carros e um grupo de motoristas vociferantes, discutindo com o proprietário. Eles tinham enchido seus tanques de gasolina com a esperança de que colocassem água [nos radiadores] como nos tempos normais. Mas não havia o que se fazer. Simplesmente não havia água para os automóveis. A Avenida Urdaneta estava irreconhecível: não mais que 10 veículos às 9 horas da manhã. No centro da via, tinha uns automóveis superaquecidos, abandonados pelos proprietários. Os bares e restaurantes não abriram suas portas. Colocaram letreiros nas cortinas metálicas: “Fechado por falta d’água”. Tinham anunciado nessa manhã que ônibus prestariam um serviço regular nas horas de maior movimento. Nas paradas, as filas tinham várias quadras desde as 7 da manhã. O resto da avenida tinha um aspecto normal, com suas calçadas, mas nos edifícios não se trabalhava: todo mundo estava nas janelas. Burkart perguntou a um colega de escritório, venezuelano, o quê fazia toda aquela gente nas janelas, e ele respondeu:
– Estão vendo a falta d’água.
Epílogo
Fica da leitura da reportagem de Gabriel García Márquez a lição de que a escolha dos personagens – e dos entrevistados e fontes em geral – é responsável por boa parte dos resultados alcançados pela reportagem. Num momento em que os grandes jornalões e os canais de TV concentram sua atenção nos mesmos de sempre, percebemos porque as meterias que lemos e assistimos são tão iguais umas às outras.
Referência
Gabriel García Márquez. Caracas sem água. In: Cuando Era Feliz e Indocumentado. Bogotá, Colômbia: Editorial La Oveja Negra, 1973.
Para os que quiserem se aprofundar no trabalho jornalístico de Gabriel García Márquez, a Editora Record vem publicando desde o início deste ano no Brasil uma série de volumes com o material jornalístico produzido pelo autor.