Do ciclo do romance portuário, Os Vira-latas da Madrugada, romance de Adelto Gonçalves publicado em 1981, traz em seu próprio título a natureza dos personagens que aparecem em suas páginas: vira-latas – pequenos ladrões, prostitutas, valentões e vagabundos – que circulam pelas franjas do porto, no espaço intermediário entre o cais e a cidade. É o mesmo universo tratado anteriormente em Cais de Santos (1939), de Alberto Leal, e Querô – uma reportagem maldita (1975), de Plínio Marcos. É o porto dos pequenos expedientes.
I
Em meio às três partes do livro que contam as histórias dos vira-latas, o narrador assume o discurso em primeira pessoa em três ocasiões, as quais recebem o nome de confissões, enquanto os demais episódios – narrados em terceira pessoa – são numerados em capítulos. Apesar da nota introdutória da editora José Olympio identificar Adelto Gonçalves como “filho de pais de modesta condição” que fez os estudos primários na escola mantida pelo Sindicato dos Operários Portuários de Santos, não devemos misturar as figuras do autor e do narrador.
O autor é uma pessoa real e, por mais que suas experiências sirvam de matéria-prima para a obra ficcional, não pode ser confundido com o narrador, construído para dar eficácia à trama e que pode assumir diversas formas. Um exemplo é o da autora francesa Marguerite Yourcenar que escreveu as Memórias de Adriano, ficção sobre o imperador romano que tem o próprio protagonista como narrador em primeira pessoa ao reconstituir sua vida no testamento que deixa ao sucessor.
Já a aproximação do autor que estudou em escola mantida por um sindicato portuário ao narrador de sua obra sugere a intenção de Adelto Gonçalves de aproveitar a força e a veracidade do testemunho para dar força ao relato, mecanismo utilizado também na obra de Plínio Marcos, na qual o protagonista conta sua história a um repórter. A própria atividade jornalística de Adelto Gonçalves, também citada na nota, colabora para o efeito de veracidade.
Vamos então à primeira das confissões:
Nasci e vivi até os dezenove anos no Paquetá, bairro da zona portuária de Santos. Como sou homem sombrio e triste, creio que nasci à noite. Sim, porque a noite do Paquetá é triste; falsa é a alegria da dançarina, da puta e da mulher da boate: riem apenas para agradar o freguês, que também é triste e só ri para esquecer a mulher que perdeu ou o amor que não teve. A noite, apesar da música, do burburinho e da luzes de neon, é triste.
Tristes são também os vagabundos e os trabalhadores do cais, os marinheiros e os moleques vira-latas da madrugada que andam por todo o Paquetá. E tristes são estas histórias. Como tristes são os tempos que as tornaram reais.
II
Enquanto a primeira confissão é mais lírica, a segunda se aproxima do texto memorialístico:
Enquanto escrevia estas linhas, não foram poucas as vezes que recordei antigos moradores do beira-cais: o velho Bahia, foguista aposentado – mais tarde, apenas o zelador do prédio do Sindicato dos Foguistas, que ficava no Largo Theresa Christina e hoje não existe mais –, sábio homem do mar, anarquista da velha cepa; Braz Aguiar, homem do interior perdido no cais de Santos, que sempre durou em seus empregos porque nunca foi de se curvar aos poderosos e ainda hoje pode ser encontrado na noite do Paquetá; Plínio Giancotti, vagabundo velho do cais de Santos que nunca quis saber de trabalhar e levou a vida inteira na preguiça, entre uma falsificação e outra; Geralda, pobre demente que tantas noites esquentou o corpo de Plínio e passava seus dias a cheirar éter e a sonhar com um filho que tinha perdido no mar; de meus amigos de infância – um deles de apelido Pingola –, alguns já mortos pela violência da vida, outros entre os frios muros das prisões; de um negro velho, escultor, que habitou o casarão do Largo Theresa Christina, hoje transformado em hotel de curta permanência; de tantos outros que a memória indecisa recorda apenas por instantes.
Ainda nessa passagem, o narrador nos fala de Nego Orlando, um “mestre da malandragem” que por muitos anos povoou a noite de Santos e que no livro seria chamado de Nego Oswaldo, um dos valentões do cais, tipo de personagem entre os grupos humanos acima apontados que ainda não freqüentou o Porto Literário. A eles Adelto Gonçalves dedicou alguns momentos de seu livro:
De gênio rebelde, bastava-lhe apenas um olhar mais desafiador para motivar uma briga. E na briga o cais nunca viu ninguém mais ágil do que Orlando, bom na capoeira, na pernada, na navalha, no tiro, no soco e no muque, como diziam naquele tempo. Ainda hoje, pai de cinco filhos e avô de sete netos, fazendo ponto nas casas de carteado do Gonzaga, bebericando com os amigos no Atlântico, Orlando é um braço respeitável, embora prefira as conversas amenas, as histórias da velha noite de Santos.
Destino diferente teve outro personagem do livro, o Grego, dono de uma banca de jornais no Largo Theresa Christina que tinha respeito no cais porque era “antes de tudo, um grande braço, parada difícil”. A molecada que jogava bola no largo costumava lembrar de uma história em que o malandro Quirino havia sido encurralado pelo marítimo Belchior e um companheiro, armados o primeiro com uma faca de cozinha e o segundo com uma pedra. Vendo tudo da banca, o Grego se aproxima, derruba um, chuta a faca da mão do outro e deixa Quirino e Belchior sozinhos, “na mão livre”, para que resolvessem de forma justa a “rixa antiga”.
O narrador nos avisa de que, apesar de muitos inimigos, Grego não andava armado e já amaldiçoava a fama que percorria o cais que a cada dia levava um valentão em frente à banca para puxar briga: “Era sempre assim: o Grego aceitava o desafio, batia no sujeito e a fama aumentava”.
Um dos desafiantes foi o Batatinha, ágil, esperto e que não hesitava em apelar quando o coisa ficava feia. Foi o que fez após levar uns “bons socos” do Grego. Puxou um canivete “daqueles de abrir num só golpe”. Mas, ao empunhar a arma, o aço acabou atraindo um relâmpago. Batatinha larga a arma e foge em direção ao armazém seis “querendo desforra”.
Para se vingar, Batatinha marca um desafio para a esquina das ruas General Câmara e Conselheiro Nébias para acabar com as diferenças. A briga mal começa e Batatinha apela para a arma:
O malandro avançou, o Grego esperava, bufava. Batatinha fez um gesto de que ia tirar o paletó. O Grego deixou porque acompanhava atento os truques de Batatinha. Mas não foi esperto: Batatinha tirou o paletó, fez que ia dobrá-lo e jogou no rosto do Grego. Foi só o tempo do Grego querer se desviar: o canivete surgiu na mão de Batatinha e riscou rápido o ar, a barriga do Grego de alto a baixo. Os moleques nem perceberam: só viram quando Batatinha já saía correndo e o Grego dobrava as pernas, as mãos desesperadas na barriga querendo segurar o sangue.
(...)
O Grego ainda deu alguns passos, encostou-se no muro da Açucareira e foi arriando devagar. O negrinho Louva-Deus gritava como um louco. As pessoas se aproximavam, os curiosos faziam roda. Alguém sugeriu chamar-se a ambulância. Mas já era tarde: o sangue do Grego encharcava a calçada, aqueles olhos azuis estavam bem abertos e parados, olhando um luminoso vermelho, a última imagem do cais.
III
A presença de valentões toma forma na década de 30 no cais de Santos. O historiador Rodrigo Rodrigues Tavares escreve que o cais, “ambiente de trabalho exclusivamente masculino”, marcado pela ostentação da força física, e em que era comum os estivadores conseguirem ser escalados “na marra”:
Sem dúvida, a força era condição importante para se resolverem os conflitos no porto e se conseguir trabalho, haja vista não só os constantes pedidos pelo comparecimento de autoridades nas assembléias da categoria para acalmar os ânimos, como também o fato de os estivadores consideraram “natural” se utilizarem (de) armas como “garantia” de trabalho.
Tavares usa como fonte um folheto de 1935 do Centro dos Estivadores de Santos com o título Aos estivadores de Santos. Já o historiador Fernando Teixeira da Silva busca numa sentença do Tribunal Superior do Trabalho de 1948 (processo 2.527-48) contra um portuário um pouco do clima do cais, em que, “pelos motivos mais fúteis”, eram freqüentes insultos, disputas físicas e agressões nesse “meio social”, cultura que fomentava também um posicionamento de “insubordinação” aos superiores. Como diz o pesquisador:
A disputa pela fama de valente (...) exigia platéia, torcida, testemunhas que deveriam funcionar como um “tribunal de reputação”, ao qual cabia reconhecer “quem era quem”, ou seja, quem gozava de respeito, reverência, distinção.
Valentão mais famoso era Antônio André Carijo, o Toninho Navalhada, um dos fundadores do Centro dos Estivadores de Santos (CES) em 1930. Era reconhecido pelo esforço na fundação do sindicato, do qual era um dos diretores e sócio benemérito nº 1. Na década de 20, Navalhada tinha 16 passagens pela polícia, 10 delas por agressão (luta corporal e ferimentos causados por arma de fogo, canivete, faca e, claro, navalha). Apesar dos serviços prestados ao sindicato e do apoio aos que procuravam serviço, em setembro de 1931, tudo de acordo com a pesquisa de Fernando Teixeira da Silva, ele é destituído do cargo de fiscal “por proceder de modo violento contra vários trabalhadores”.
Sem os rendimentos de 600 mil réis mensais, Navalhada toma um revólver 38 e se dirige ao Café Evaristo para tomar satisfações com o presidente do CES, Octávio Thomaz. Depois de algumas trocas de insultos, Navalhada puxa a arma e assassina Thomaz.
Epílogo
Ao longo das décadas de 30 e 40, o historiador aponta uma série de medidas tomadas pelas associações de classe e pelas autoridades trabalhistas para democratizar o trabalho da estiva e diminuir a influência dos valentões na escolha dos trabalhadores, entre as quais o sistema de rodízio.
Essas mudanças fizeram com que, anos depois, em 1959, Navalhada trocasse de posição e ele mesmo ser assassinado por Simeão Xavier de Oliveira. A pesquisa traz um relato de época, do jornal O Diário, de 25 e 26 de dezembro daquele ano:
[Navalhada,] por ser estivador mais antigo de Santos, e ter sua fama de homem perigoso, não queria trabalhar, mas queria receber o dinheiro. Entregava sua carteira do sindicato ao contramestre, retirava-se e no dia seguinte ia receber a paga de um trabalho que não fez. Os outros trabalhavam por ele. Foi por isso que se originou a rixa. [Simeão], por força do sistema de rodízio, foi trabalhar, e não quis, o que é justo e razoável, admitir o privilégio desfrutado de sócio “número 1”.
Como disse uma vez um “doqueiro das antigas” ao repórter Eugênio Martins, do Jornal da Orla: “Lugar de freira é no convento e não no cais do porto”.
Referências:
Adelto Gonçalves. Os Vira-latas da Madrugada. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.
Fernando Teixeira da Silva. Operários sem patrões: os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
Rodrigo Rodrigues Tavares. A “Moscouzinha brasileira: cenários e personagens do cotidiano operário de Santos (1930-1954). Coleção Histórias da Repressão e da Resistência. São Paulo: Associação Editorial Humanitas e Fapesp, 2007.
Rodrigo Rodrigues Tavares. O porto vermelho: a maré revolucionária (1930-1945). Módulo IV – Comunistas. Coleção Inventário DEOPS. São Paulo: Arquivo do Estado e Imprensa Oficial, 2001.