Opinião
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- Marcos Coimbra
Marcos Coimbra, sociólogo, presidente do Instituto Vox Populi e também colunista do Correio Braziliense. Artigo publicado, originalmente, na revista CartaCapital
A sociedade brasileira precisa decidir o que quer. Se acredita que devemos insistir na democracia ou se considera que não somos um país onde ela é possível.
São muitos os paralelismos entre o momento atual e o que antecedeu o golpe de Estado de 1964. Lá, como agora, as velhas classes dominantes, seus representantes e porta-vozes se convenceram de que, na democracia, não conseguiriam continuar impondo seus interesses ao conjunto da sociedade. No jogo eleitoral, perderiam.
Mas não tinham força e legitimidade para virar a mesa na marra. Alguém, em seu nome, teria de fazê-lo. O papel dos militares naqueles anos está sendo hoje desempenhado por outra aliança nascida dentro do aparelho de Estado. Seus agentes são juízes, policiais e promotores, imbuídos da mesma convicção da superioridade de propósitos que coronéis e generais compartilhavam.
Os militares abandonaram sua função moderadora em 1964, assim como os integrantes dessa nova aliança descartam hoje a função de equilíbrio típica do Judiciário. Os “jovens turcos” togados e seus satélites ignoram as hierarquias e encurralam aqueles que deveriam ser seus superiores. Assemelham-se aos tenentes enraivecidos que invadiram a política no início do século XX, impacientes com a democracia e convencidos de que eram melhores que qualquer um.
Essa nova aliança se inspira e é incentivada por instituições ideológicas internacionais, de maneira análoga ao que aconteceu com parte da liderança militar nos anos 1950. Só um tolo suporia que os ensinamentos que receberam nos EUA, assim como os acordos de cooperação que firmaram, eram os melhores para os interesses nacionais. Algo semelhante acontece hoje no treinamento e no estímulo que os integrantes dessa aliança recebem de fora.
Na vida social, os pontos de contato entre ontem e agora são muitos. Os que marchavam em defesa da ordem e da propriedade em 1963 e 1964 são tão caricatos e ridículos como seus filhos e netos. Acreditavam em bobagens igualmente toscas e professavam a mesma religiosidade primitiva.
O proscênio é parecido: um setor da burocracia rebelado e se achando capaz de reformar o País, um pedaço da sociedade “nas ruas” fazendo coro para reivindicar uma intervenção “saneadora”. Também é igual o ingrediente midiático, uma imprensa dedicada a escandalizar o noticiário e a amplificar as insatisfações. São exatamente os mesmos os órgãos de imprensa que patrocinaram o golpe de 1964 e os que hoje atuam. A estratégia é igual, de amontoar denúncias e atacar no plano pessoal a liderança trabalhista.
Acampamento de manifestantes pedem intervenção militar, em Brasília. Inúmeros são os paralelismos entre 64 e o momento atual (Foto: Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil)
A elite política conservadora de então tem muito a ensinar a seus sucessores. Os que ficaram na retaguarda, espicaçando os militares, orientando jornais e revistas a incendiar a opinião pública e rindo dos tolos que foram às ruas, mas encorajando-os, se surpreenderam com o tamanho da serpente cujos ovos chocaram. Nada mais exemplar que a trajetória de Carlos Lacerda, de líder maior do golpismo a vítima de banimento da vida política.
Tucanos, demistas e associados precisam se lembrar que nada garante que a aliança golpista se limitaria a lhes transferir o poder. Eliminados petistas e trabalhistas, quem asseguraria que seus integrantes voltariam pacificamente à normalidade? Como ter certeza de que a imprensa não os rifaria na hora em que se tornassem alvo?
Mas não há apenas semelhanças entre 1964 e hoje. Trinta e tantos anos de democracia fizeram com que aumentasse a proporção de pessoas avessas a aventuras golpistas. O desenvolvimento das últimas décadas e o conjunto de políticas de ampliação da cidadania produziram um povo mais disposto a ser ator e não apenas espectador da vida brasileira.
Consolidou-se a primeira liderança popular de expressão nacional. Lula, apesar da incessante campanha para desmoralizá-lo, continua a merecer o respeito e o carinho de uma parcela da sociedade maior que qualquer político jamais teve em nossa história. Atacá-lo é atacar esses milhões de pessoas. Ninguém sabe como reagiriam.
Quem não se alinha com o oportunismo de alguns políticos, quem aprendeu que é no respeito à democracia que podemos mais facilmente e melhor resolver nossos problemas, quem acreditou e acredita na capacidade do povo escolher seu caminho sem tutela, precisa refletir a respeito da conjuntura que atravessamos. Deixados soltos, os aventureiros do golpe não se deterão, até porque se acham perfeitos. Há que pará-los.
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- Diomedes Cesário da Silva
Por Diomedes Cesário da Silva, ex-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet)
A Petrobrás está sendo reorganizada. São mais de 40 grupos de trabalho, cujo resultado só será conhecido depois da aprovação final pelo Conselho de Administração.
É uma pena, pois perde-se muito com a não exposição do assunto ao debate e à contribuição dos empregados. Muitas vezes, tem-se a certeza do que fazer e não precisar ouvir mais ninguém, porém, um simples comentário nos faz repensar e corrigir uma rota que levaria a um resultado indesejável.
Decisões importantes estão sendo tomadas nas mais diversas áreas, impactando o futuro da companhia, mas gostaríamos de tratar de uma pela qual a Petrobrás é respeitada em todo o mundo: sua tecnologia.
A companhia chegou a este estágio de desenvolvimento pelo cuidado na formação e aperfeiçoamento de seus quadros técnicos, pela sua integração e capacidade de procurar fazer e buscar o estado da arte nos mais diversos setores onde atua. Dos laboratórios de pesquisa, plantas pilotos, projeto, construção, operação, manutenção, inspeção, a Petrobrás criou um ciclo virtuoso de incorporação de conhecimento, inovação e tecnologia.
Plataformas
À primeira vista, parece estar-se falando do óbvio, mas não é bem assim. Na vida prática, muitas vezes prefere-se entregar a um terceiro uma atividade para se concentrar no que se considera o principal. É claro que não se pretende fazer tudo, como fabricar equipamentos, por exemplo, mas é fundamental ter o conhecimento e o domínio sobre a tecnologia, sob pena de perder capacitação e comprometer o desempenho do negócio.
As novas plataformas estão sendo afretadas. Isto não significa que as entregarão prontas para operarmos. É muito mais preocupante: as empresas operarão para a Petrobrás, recebendo pelo petróleo produzido. A justificativa é a falta de recursos para investimentos. Pode parecer fazer sentido para alguns, mas uma análise mais cuidadosa deixa claro que está-se entregando uma boa parte do lucro obtido, que paga com sobras o investimento e juros do financiamento.
Após um contrato de 10 anos, com a plataforma já amortizada, deve-se negociar um novo período. Excelente negócio para o Consórcio; se a plataforma fosse própria, a fase de investimento estaria concluída. . O afretamento compromete boa parte da renda petroleira, mas as perdas não são evidentes nos indicadores financeiros, já o endividamento é visível. Parece que por isso se prefere afretar e não se endividar para construir e operar.
Nunca é demais lembrar que a plataforma será comprada no exterior, com menores exigências de segurança e, em caso de algum acidente, a responsável será a Petrobrás, ainda que não a esteja operando.
Ao transferir a construção, operação e solução dos problemas que aparecerem, está-se abrindo mão do conhecimento do porquê e do como fazer. E é exatamente este conhecimento que fez a Petrobrás ser o que tem de mais valor: sua tecnologia. Se adotasse esta filosofia quando nasceu, seria uma empresa de papel e já teria sucumbido.
Contratos EPC
Nas últimas décadas. Comprometemos a capacidade de gerenciar empreendimentos de grande porte ao adotar os contratos globais (EPC), entregando a um consórcio a decisão de fazer o projeto, comprar os equipamentos, gerenciar interfaces entre disciplinas e empresas, construir e montar a unidade. A justificativa era de eliminar as interfaces, deixando tudo com uma única empresa que contrataria as demais e entregaria a obra pronta para operar. O modelo é o contrário de tudo que procurou se evitar na construção de refinarias e plataformas nas décadas de 1970-80. Basta relembrar os antigos GEOP, GECAM e, posteriormente, o SEGEN.
O resultado está à mostra para quem quiser ver, com preços abusivos, prazos não cumpridos, contratos superfaturados pelo cartel das empreiteiras, ex-dirigentes e empreiteiros presos e a condenação do TCU.
Cenpes
No seu centro de pesquisas (Cenpes), a pesquisa e desenvolvimento que eram executados por seus técnicos, passou em grande parte a ser contratado com terceiros, relegando seus pesquisadores a simples coordenadores de projetos a meros medidores de trabalho executado. Nada contra os convênios com as universidades e centros de pesquisas, mas existe a necessidade de haver uma execução conjunta e harmônica e não apenas de fiscalização, caso contrário, perde-se a capacitação e a independência tecnológica.
Nesta etapa, mais que em qualquer outra, serão geradas as patentes, inclusive as defensivas, para proteger o negócio dos concorrentes e fornecedores. As inovações, que serão utilizadas muitas vezes dezenas de anos depois, tem aí seu nascedouro. Para ficar apenas num exemplo, a capacitação em águas profundas de mais de 2000 metros de lâmina dágua, teve origem em projetos de 300 metros, evoluindo gradualmente até o estágio atual. A tecnologia não existia e só foi desenvolvida porque o petróleo estava lá.
A reestruturação não deve ter como método apenas juntar caixinhas, sem antever as distorções ocasionadas nas atividades da companhia.
Engenharia básica
Na atividade de engenharia básica (EB) do CENPES, que incorpora os avanços tecnológicos da pesquisa, operação, equipamentos e manutenção, pretende-se juntá-la à área de empreendimentos, responsável pelo projeto de detalhamento, construção e montagem. A justificativa é integrar a atividade.
Ocorre que esta integração já existe, podendo sempre ser aperfeiçoada. Releva-se a integração com a pesquisa e as unidades operacionais, mas esquece-se que nos 40 anos de sua existência, a fase de grandes projetos como a RNEST e o COMPERJ ocorreu apenas entre 2007 e 2012. No restante dos anos, o trabalho se concentrou em pequenos projetos de revamps (revisões e ampliações), desengargalamentos e otimizações de unidades. Graças a eles foi possível aumentar o processamento de petróleo sem a construção de nenhuma nova refinaria desde a década de 1970. A última foi a REVAP, em São Paulo, entrando em operação em 1980.
Novas unidades, apenas as de tratamento de produtos, como remoção de enxofre, programas de fundo de barril para aumentar a rentabilidade, maximizando o rendimento de produtos mais leves, reduzindo importações, além das plataformas e unidades de processamento de gás natural, é claro.
A engenharia básica não produz apenas projeto básico. Uma parcela significativa de suas atividades é voltada à assistência técnica à unidades e projetos de pesquisa e desenvolvimento. Sem falar na solução de problemas ocorridos em projetos contratados, cujas equipes são simplesmente desfeitas ao final do trabalho, cabendo aos técnicos da Petrobrás resolver os problemas deixados.
Este apoio se torna ainda mais críticos nos dias de hoje, com a preocupante desativação dos núcleos de engenharia nas refinarias e regiões de produção. A relevância da aplicação do conhecimento acumulado nas assistências aos órgãos operacionais é ainda maior quando é necessário reduzir os custos operacionais e promover a eficiência.
O exemplo da Statoil
Há quem diga que não há porquê se preocupar, pois na nova estrutura tudo continuará da mesma forma. Qualquer técnico com algum tempo de empresa sabe que a prioridade e direção é dada pela função principal do órgão. Numa estrutura de empreendimentos, como a que está sendo montada, a prioridade será de seu produto final: a obra. Se tiver que priorizar, o desenvolvimento tecnológico será relegado a um segundo plano.
Por todas estas razões, o projeto básico deve ficar fora da estrutura do empreendimento e as contratações de projeto de detalhamento, construção e montagem devem ser feitas com empresas diferentes, evitando os contratos globais.
Por fim, vale pensar sobre a informação divulgada pela Brasil Energia de que a norueguesa Statoil, na reestruturação de negócios, resolveu fundir sua "área de Excelência Técnica com o de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação, que formarão a área de Desenvolvimento e Implementação Tecnológica." Aparentemente estão indo para o modelo P,D&E (Pesquisa, Desenvolvimento e Engenharia), utilizado pelo CENPES há 40 anos, que a reestruturação atual pode extinguir.
Neste momento de redução de investimentos e novos empreendimentos, deve-se procurar otimizar, inovar e valorizar a tecnologia.
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- Felipe Pinheiro
Por Felipe Pinheiro, petroleiro da Regap e diretor do Sindipetro-MG
Brasileiras e brasileiros talvez não se deram conta, mas sofreram uma de suas maiores derrotas das últimas décadas. Diante de um governo fragilizado e covarde, além de um congresso obcecado em destruir tudo quanto é conquista do povo brasileiro, foi aprovado o Projeto de Lei do Senado (PLS) 131, que trata de alterações na lei do pré-sal.
Na prática, o projeto do senador José Serra (PSDB-SP) possibilita a entrega da operação dos campos de petróleo da área do pré-sal - anteriormente de exclusividade da Petrobrás - para multinacionais estrangeiras. Um acordo de última hora entre Dilma e o PMDB definiu que essa decisão passará a ser do Governo Federal, como forma de reduzir os danos. O projeto agora segue para a Câmara dos Deputados, com chances de passar fácil pela casa.
Entenda: o que antes era garantido por lei passará a ser definido, caso a caso, pelo governo que estiver no poder. O projeto de desenvolvimento econômico e social do Brasil atrelado à exploração dessa enorme riqueza deixará de ser uma política de Estado para ser uma escolha de cada governo. A maior descoberta de petróleo do mundo dos últimos tempos, fruto de anos de pesquisa e investimentos brasileiros, portanto, poderá não ficar sob o controle do nosso país!
Movimentos sociais e sindicatos vêm lutando contra esse projeto desde 2015, sabendo dos prejuízos para a geração de emprego, renda e recursos para a educação e saúde no Brasil, assim como para o futuro da Petrobrás. Além disso, como o petróleo vive um momento de crise, com o produto sendo vendido a preços muito baixos, os estrangeiros terão a oportunidade de conquistar áreas do pré-sal a preço de banana!
Muitos podem se perguntar: a Petrobrás não está quebrada? É importante que se esclareça que os problemas financeiros da estatal estão relacionadas com sua alta dívida e com a queda dos lucros diante da atual crise mundial do petróleo. Perdas envolvidas com esquemas de corrupção, embora revoltantes, são pequenas em relação ao endividamento da empresa. Aliás, o governo deveria propor soluções para ajudar a empresa nesse momento difícil, justamente pela importância da Petrobrás para a economia nacional e para o controle estatal da nossa galinha dos ovos de ouro: o pré-sal.
É bem verdade que não é de hoje que sabemos que essa ambição em entregar as nossas riquezas está no DNA dos tucanos. O que nos preocupa, no entanto, é ver o governo Dilma cedendo e realizando acordos sobre temas tão importantes para a soberania e o futuro do país. Esse ato de covardia faz com que esse governo seja cada menos defensável.
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- João Guilherme Vargas Netto
João Guilherme Vargas Netto, consultor sindical
Com a divulgação dos números assustadores referentes à queda do PIB brasileiro em 2015 e com a confirmação dos dados gerais que indicam tal retrocesso até agora, torna-se cada vez mais urgente e necessária a luta pela retomada do desenvolvimento, já que a recessão não é natural nem eterna.
Embora prejudicada pela espetacularização da crise política, abre-se a oportunidade para uma discussão séria sobre as características da atual recessão e sobre as medidas corretas (do ponto de vista dos trabalhadores, da sociedade, do governo e dos empresários produtivistas) para enfrentá-la.
É óbvio que tais procedimentos não têm apelo midiático: não se noticia, por exemplo, a verdadeira campanha nas portas de fábricas dos metalúrgicos de São Paulo, nem as manifestações unitárias de trabalhadores em São Bernardo, em Gravataí, em Curitiba e em outras cidades contra o desemprego e nem se registra que a última reunião do Conselhão estabeleceu sete eixos temáticos de luta pela retomada do desenvolvimento.
A atual recessão tem quatro características marcantes: ela é intensa, generalizada, prolongada e não homogênea. Dessas quatro, as três primeiras podem ser facilmente constatadas em qualquer tabela de dados sobre a economia.
Quero destacar a quarta característica, que é a não homogeneidade do fenômeno recessivo em relação às regiões brasileiras, às cidades brasileiras, aos setores econômicos e às categorias de trabalhadores envolvidos.
A recessão manifesta-se de forma diferenciada, mais ou menos intensa ou aliviada, nas diversas regiões do país, concentrando seus efeitos maléficos no Sudeste.
Em cada região, por sua vez, as capitais, as grandes cidades e as regiões metropolitanas sofrem bem mais que o conjunto das outras cidades.
Há setores e grupos empresariais que estão com bom desempenho (principalmente aqueles ligados a exportação, a alguns tipos de manufaturas e os que incorporam alta tecnologia). Mesmo na indústria, setor avassalado pela recessão, mas que apresentou em janeiro um crescimento de 0,4%, uma análise criteriosa aponta inúmeras situações diferenciadas.
Entre os trabalhadores, afetados todos pelo desemprego, configuram-se algumas situações preocupantes: alto desemprego na indústria metalúrgica, alto desemprego entre jovens e alto desemprego dos trabalhadores mais qualificados (que se transformam em PJ).
A análise criteriosa da recessão e de seus efeitos diferenciados é um prerrequisito para melhor enfrentá-la, descobrindo os caminhos para sua superação e fazendo a alavanca onde é possível vitórias parciais positivas.
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- João Martins da Silva Junior
João Martins da Silva Junior é presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA)
O ano de 2015 se encerrou com as mesmas notícias com que já estamos ficando acostumados: a economia retraiu-se, a inflação elevou-se, a indústria encolheu e o desemprego aumentou. Nesse cenário desalentador, só a agropecuária seguiu crescendo, produzindo mais, exportando mais e gerando US$ 80 bilhões de superávit. Se as previsões dos analistas econômicos se confirmarem, 2016 repetirá a mesma história.
Será possível que, numa economia em crise generalizada, um setor isolado continue se expandindo sem ser afetado pelo ambiente ao seu redor?
Isso só seria possível se nosso setor de produção rural fosse uma espécie de enclave econômico, operando no território do País, mas com a produção voltada quase exclusivamente para os mercados externos. Exemplos dessa natureza podem ser encontrados em países produtores de petróleo ou outros minerais, cujas cadeias produtivas têm pouca integração com sua economia interna. O que se passa com a agricultura e a pecuária do Brasil é muito diferente.
Apesar de sermos hoje um dos três maiores fornecedores de alimentos para o mundo, com presença dominante numa lista de mercados que inclui a soja, café, suco de laranja, carnes bovina, suína e de frango, açúcar, algodão, tabaco, além de investidas promissoras em mercados como os de milho, frutas e lácteos, a verdade é que a produção rural brasileira é predominantemente voltada para o mercado interno.
Além disso, nossa estrutura de produção é altamente diversificada, produzindo centenas de produtos exclusivamente para o consumo nacional. A produção rural brasileira não é um enclave exportador, mas surgiu e cresceu para atender ao mercado interno e graças à sua produtividade e a seus custos competitivos exportou excedentes e conquistou os mercados mundiais.
Para que a agricultura e a pecuária do Brasil possam seguir crescendo é absolutamente necessário que o País supere a crise que está vivendo. Caso contrário, o setor também será arrastado para as dificuldades que hoje atingem tão duramente a indústria e o setor de serviços. Se o desemprego e o declínio da renda familiar se mantiverem por mais tempo, o resultado natural será a contração do mercado interno, com pressão sobre os preços, em atividades cujas margens de lucro já são muito estreitas na maioria dos casos.
A maior parte dos produtos da nossa agricultura é destinada exclusivamente ao mercado doméstico e não poderá compensar a retração das vendas externas com a exportação. Quanto aos outros produtos com tradição exportadora, o aumento dos saldos exportáveis poderá pressionar ainda mais os preços externos, que já estão em trajetória declinante faz algum tempo.
Um possível colapso de algumas atividades produtivas atingirá especialmente os produtores mais vulneráveis, desorganizando estruturas produtivas longamente construídas, com inevitáveis reflexos sociais. Como é uma atividade sazonal, dependente do curso das estações, a agropecuária tem pouca capacidade de adaptação aos ciclos econômicos.
Se a crise brasileira nos atemoriza quanto à demanda, a história não é menos assustadora em relação à oferta. A moderna agropecuária do País, que teve início nos anos 70 do século passado, é um empreendimento essencialmente privado. O Estado teve sua parte, em especial na produção do conhecimento científico e tecnológico, por meio da excelência singular de nossas universidades rurais e da experiência pioneira da Embrapa, bem como na montagem de um sistema eficiente de crédito rural.
Foi a iniciativa privada que transformou os campos do sul do Brasil e ocupou os vastos cerrados improdutivos que predominavam em grande parte de nosso território. Foi trabalho de pioneiros, portadores de experiência profissional na produção e capazes de empreender e assumir riscos tremendos. Povoaram grandes vazios, sem os confortos das cidades e sem a menor infraestrutura, numa aventura pessoal que merece justo registro na História moderna do Brasil.
A eficiência do setor privado excedeu, em muito, a competência do Estado brasileiro. Assim, os resultados de grande parte da produção são afetados pela carência quase absoluta de infraestrutura. Não temos rodovias, ferrovias, hidrovias ou portos para escoar a produção a custos minimamente razoáveis. Os custos logísticos recaem sobre o produtor e o consumidor doméstico.
Por mais que os produtores aumentem sua produtividade, com pesados investimentos dentro das fazendas, seus lucros estão cada vez menores e os preços aos consumidores são maiores do que poderiam ser. O Estado brasileiro encontra-se, há muito, em situação quase falimentar e não tem sequer uma fração dos recursos necessários aos investimentos que precisam ser feitos.
Esta é uma realidade que não podemos disfarçar com a retórica fútil das ideologias políticas. Só o setor privado pode construir e operar a infraestrutura que precisamos. Mas a incompetência dos órgãos estatais, capturados pela baixa política, e a aversão ideológica ao capitalismo e ao setor privado ou retêm mais encargos do que ele pode suportar ou impedem que os processos de concessão cheguem a termo.
Enquanto os preços externos estavam anormalmente elevados, todas as deficiências puderam ser ignoradas. Agora que a realidade bate à nossa porta, quem vai pagar o preço da imprevidência? Mais uma vez, não será o Estado abstrato, mas os produtores e consumidores, gente de carne e osso.
Até agora, a produção rural tem sobrevivido à crise geral do Estado e da economia brasileira. Infelizmente, nosso sentimento é que esta crise vai afetar a agricultura e a pecuária, se durar mais tempo. A paisagem política, porém, não nos deixa margem para muita esperança. O poder político, entre nós, parece aspirar apenas à sua própria sobrevivência, sem mais nenhum propósito de resolver os problemas verdadeiros do País e das pessoas. É o que nos dá razão de sobra para temer pelo futuro.