Quinta, 21 Novembro 2024

Um cachorro morder um homem é coisa normal, agora, um homem morder um cachorro, é notícia
(frase atribuída a jornalistas, para exemplificar a leigos a diferença
entre algo banal e uma notícia que merece ser publicada).

Em primeiro lugar, gostaria de pedir desculpas aos leitores, pois em meu artigo anterior prometi escrever algo sobre os trens de alta velocidade chineses. Porém, um trem de baixa velocidade brasileiro, da ALL, causou tremendo acidente em São José do Rio Preto e algumas palavras sobre isso tem maior importância neste momento.

Mas o leitor mais atento irá perguntar: 10 dias já se passaram desde o acidente e só agora ele vem com um artigo? Por que não escreveu um ou dois dias depois do acidente?

Mas as respostas são justificáveis. Se eu escrevesse de imediato, o faria com o fígado e não com os dedos e o teclado. E em segundo lugar, é bom contar primeiramente até dez (dias), vendo os acontecimentos, analisando os fatos e tomar fôlego.

E deixar dez dias para falar de um acidente aqui neste País não é algo simples, pois a cada dia somos surpreendidos por um pior que o outro (ou tão grave quanto). Depois do acidente da ALL, tivemos o guindaste do Itaquerão e o prédio desabado em Guarulhos, só para ficar naqueles que nos vêm à lembrança de imediato.

Mas eu fiquei de olho na imprensa durante esses dias, para ver o que foi reportado sobre o acidente de São José do Rio Preto. Tirando o Portogente, que de imediato já chamou a ANTT às suas responsabilidades, das quais sempre foi pródiga em se omitir e reportou o perigo da operação da ALL, o restante da imprensa especializada foi, digamos, “caridosa” demais com a ALL.

Foto: Hamilton Pavam/Diário da Região

Trem da ALL avançou em casa próximas à linha e matou oito pessoas

Basicamente, o que foi publicado na imprensa especializada se resumiu à cópia do que os sites UOL, Estadão e G1 publicaram, mas que pelo menos descreveram o desastre, sem emitirem opinião da real causa do acidente, ou seja, da temerária operação da ALL, talvez porque não seja objeto de interesse do dia-a-dia do noticiário ou dela não terem maior conhecimento. O Valor Econômico, quando se refere à ALL, mesmo em caso de acidentes, apenas leva em consideração os aspectos econômico-financeiros do acontecimento, o quanto vai impactar nos números, como o “mercado” vai reagir e o que os analistas vão dizer. Não entra no mérito da operação ferroviária, nem se morreu alguém ou se o patrimônio de terceiros foi destruído.

E agora vem a “cereja do bolo”: a Revista Ferroviária simplesmente bloqueou os comentários no post que reportava a notícia do acidente (eu mesmo tentei publicar comentários em 3 computadores diferentes, a mensagem nem era enviada, vinha mensagem de erro). Apenas alguns dias depois, quando a notícia já havia saído da primeira página é que os comentários de uns poucos leitores foram publicados, todos expressando indignação. Blogs especializados nada publicaram. Um conhecido meu, editor de um excelente blog, deve estar cansado de falar dos constantes acidentes da ALL e suas sindicâncias, talvez se considere ao falar da ALL um ferreiro batendo em ferro frio. Eu mesmo só consegui publicar um comentário no UOL, de teor muito semelhante ao que o colega Engenheiro Paulo Ferraz reportou ao Portogente. Mas essa notícia só ficou no site algumas horas, na terça-feira, dia 26, já saiu da página. Aí vieram as reportagens dizendo que muitas cidades querem a construção de um contorno ferroviário. Dói perguntar isto, mas infelizmente a resposta é óbvia: Pra que servem hoje as ferrovias no Estado de São Paulo? Em sua maior parte, só para incomodar o dia-a-dia das cidades e provocar riscos às suas populações. Não prestam mais nenhum serviço.

Mas porque isso? Será que acidentes na ALL já viraram coisa tão comum e nenhuma providência é tomada por quem deveria? É por isso que ninguém mais reporta os acidentes da ALL de forma crítica e as cidades a querem o mais longe possível? Acidentes ferroviários sempre foram algo como o “homem que morde o cachorro”, mas a ALL parece que os transformou em “cachorro que morde o homem”. E é a conversa de sempre: Vamos abrir uma sindicância, etc. e tal e fica tudo por isso mesmo. Depois eles mandam um “press-release” dizendo que estão trocando 5000 dormentes em algum lugar da via, que estão investindo x mil reais e assim vão até que ninguém mais se lembre do que aconteceu. 5000 dormentes são suficientes para menos de 1,5 km de via e manutenção de via permanente é algo a ser feito constantemente e não esporadicamente, é para se fazer sempre e não só quando há perigo à operação.

Sabemos que acidentes acontecem e devem ser investigados. Mas e quando são frequentes e suas causas são sempre devidas à incompetência ou ao descaso? Devem continuar se chamando acidentes ou devem passar a se chamar tragédias anunciadas? Não precisamos ir muito longe para concluir isso, vejam na foto abaixo, a “qualidade” do assentamento dos trilhos e o alinhamento da via de um trecho da ALL. Uma parte dos trilhos está fixada com grampos (de forma descontínua), outra com parafusos e em cima, os trens unitários padrão da ALL, normalmente tracionados por 3 locomotivas de 150 toneladas e uns 80 vagões carregados, com algo como 80 toneladas cada, num total de 6850 toneladas. Uma conta simples mostra que a energia de um trem desses a uma velocidade de 36 km/h (média-alta para os padrões da ALL e ridícula para os padrões internacionais) é equivalente a 81 kg de TNT. Essa energia toda numa via precária, em um descarrilamento, com o trem sem controle, dá ideia do tamanho do estrago que os vizinhos da linha em São José do Rio Preto tiveram a infelicidade de presenciar.


Foto:
Reinaldo Basso, publicada no Facebook, retirada do ótimo blog de J. R. França especializado na história da
Estrada
de Ferro São Paulo–Minas. O título do post é “Maquinista Jesus Cristo” (ele não diz a razão do título, mas
creio que é porque
deve ser mais fácil um homem andar sobre as águas do que um trem sobre esses trilhos)

O trecho de Santa Fé do Sul (divisa com Mato Grosso) até Campinas era operado antes da privatização pela Fepasa, com tração diesel entre Santa Fé e Araraquara e com tração elétrica entre Araraquara e Campinas. Porém, os trens que circulavam nesse trecho eram curtos (no máximo 25 vagões), tração simples com peso total de 1800 toneladas e velocidade que variava entre 55 a 75 km/h. Porém, após a privatização, as concessionárias que passaram a operar esse trecho, primeiramente a destruidora de material ferroviário denominada Ferroban, de triste memória e posteriormente a não menos detestável ALL, passaram a utilizar, como já mostramos, trens 3 a 4 vezes mais pesados e compridos e com a metade da velocidade.

O que a ALL parece não perceber é que as estruturas existentes dessa linha, construídas na maior parte no século XIX, e os trilhos, que vêm desde a época da Fepasa, de repente passaram a suportar um esforço 3 a 4 vezes maior num tempo também 3 ou 4 vezes maior. E se já percebeu, deve estar fazendo as contas do que é mais barato, se é reforçar as estruturas e trocar trilhos; ou perder um trem, a carga e se der sorte, nenhuma vida. A segunda opção ainda parece estar sendo preponderante.

E nem falamos da manutenção dos trens. Para nossa sorte, para não dizerem que pegamos no pé, que somos cri-críticos, existem muitos férreo-fãs que se aprazem em tirar fotos das composições da ALL em diversos pontos da via (lugares que anteriormente eram chamados de “estações”) e que de vez em quando flagram alguma prova de incompetência ou de descaso, como esta abaixo.


Foto: Leonardo S. Ventura, retirado do Facebook – Ferrovias e Trens. Publicada em 21 de agosto de 2013. Segue
a transcrição do post: “Notem no sistema de freios desse vagão que ele não tem um parafuso adequado pra
segurar a corrente e o resto do equipamento, sendo que improvisaram com um TIREFOND, que serve para
fixar a placa de apoio ao dormente”

Por isso é que não podemos mais admitir a favor da ALL, o SILÊNCIO OBSEQUIOSO da imprensa especializada, da ANTT, do DNIT, do Ministério dos Transportes e até mesmo da Polícia Federal e do Ministério da Justiça, sendo que estes últimos já deveriam ter tomado alguma ação contra a diretoria da ALL, tanto (principalmente) pelas vidas roubadas quanto pela destruição patrimonial e ambiental que ela causa em sua desastrada e temerosa operação ferroviária. Por muito menos o governo da Argentina os enxotou de lá. Quantas pessoas ainda terão que morrer e quanto patrimônio alheio terá que ser destruído para que o governo brasileiro faça o mesmo?

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