Muitas são as lembranças do tempo dos bondes, como as idas aos cinemas nas matinês dos domingos, a locomoção de casa para a escola, e por volta de 1960 para o trabalho, no Centro. Recordo também das incursões feitas por mim e meus colegas do Embaré, na famosa Boca do Porto de Santos, onde ficavam situados as boates destinadas aos marujos e também freqüentadas por cidadãos da Cidade. Essas boates ofereciam grandes shows, isso por volta de 1965. Essas incursões eram sempre feitas por meio do bonde 19, embarcávamos na Av. Pedro Lessa, esquina com a Av. Almirante Cochrane (o Canal 5).
Cartão-postal do início de 1909 mostrando os bondes puxados a burros, no
ano em que foi implantado o sistema para veículos elétricos. O local é o
antigo Largo do Rosário, hoje Praça Ruy Barbosa. Vendo-se a antiga Agência
dos Correios e à esquerda, o início da Rua General Câmara. Acervo: L. J. Giraud
Nossas chegadas eram triunfais, parecia até uma composição férrea presidencial, chegando numa determinada localidade. Quando nos aproximávamos das casas noturnas, passávamos dos bancos para o estribo, e quando o veículo estava próximo ao ponto e em baixa velocidade, saltávamos andando, para dar um ar mais adulto, na verdade estávamos passando de adolescentes para adultos, e como tal, curiosos pelos entretenimentos diversos oferecidos pela Boca.
Mesmo com inúmeras lembranças, prefiro recorrer a conhecedores mais profundos dos bondes, como o poeta Narciso de Andrade e os já falecidos Prof. Nelson Salasar Marques e o jornalista Olao Rodrigues, que escreveram muitas coisas interessantes sobre os inesquecíveis bondes de Santos.
Um dos mais belos cartões-postais de bondes, mostrando o de nº 2, exata-
mente na divisa de Santos com São Vicente. Ao fundo, a Ilha Urubuqueçaba
e à esquerda, os muros do antigo Hotel Internacional. Acervo: L. J. Giraud
No Almanaque de Santos de 1969, Olao Rodrigues conta uma síntese da história da companhia City (The City of Santos Improvements Co. Ltd.), autorizada pelo Decreto Imperial nº 8.807 de 07/04/1881. Inicialmente a empresa britânica executava serviços de captação, adução e distribuição de água, distribuição de gás e de energia elétrica.
Quando a City iniciou o serviço de transporte coletivo, havia em Santos quatro empresas de bondes de burros, e funcionavam precariamente, sendo elas fundidas numa só, o sistema passou então a ser dirigido por essa organização britânica, desde a circulação do primeiro bonde elétrico na Cidade em 1909, até a transferência para o município em 1951, e passou a ser a SMTC – Serviço Municipal de Transporte Coletivo.
Ainda o bonde 2, deixando a Praça da Independência, com destino ao
Centro. À esquerda, o muro da Duquesa Áurea Conde, hoje um estaciona-
mento ao lado do posto Esso da famosa Praça. – 1931. Acervo: L. J. Giraud
Durante várias décadas a Cia. City foi administrada por grandes executivos britânicos, como: H. K. Heyland, de 1881 a agosto de 1893; Hugh Stenhouse, de 1893 a 1911; Bernard Frederick Browne, de 22 de outubro de 1911 a 1937; Henry Thomas William Pilbeam, de 1937 a 1956. Ficando o mais conhecido deles, Bernard Browne, que dá nome a uma rua, no bairro da Aparecida em sua homenagem. Browne contribuiu muito para o desenvolvimento da Cidade, por isso recebeu esse reconhecimento.
O inesquecível Prof. Nelson Salasar Marques, falecido em fevereiro de 2005 é autor do livro Imagens de um Mundo Submerso. Diga-se de passagem, são as memórias de Santos desde a década de 30 e essa obra é recheada de lembranças e história do bairro chinês, do macuco, dos bondes, da política, do Colégio Canadá, entre outras. Todo santista deveria possuir essa obra, pois nelas estão muito das nossas coisas.
Cartão-postal de 1930, mostrando o bonde trafegando pela Avenida
Conselheiro Nébias no sentido Centro, nas proximidades da Av Rodrigues
Alves. Nota-se o tipo de construção das casas da época. Acervo: L. J. Giraud
No volume III desse livro, Salasar recorda a primeira vez que viu as águas do estuário de dentro do bonde 19. Parte do texto é transcrito abaixo:
Era ao longo desse mar (estuário) sem fundo que o bonde 19 me conduzia no seu cangote, percorrendo a longa fileira dos armazéns das Docas. O bonde 19 sozinho levava todo o Macuco para o centro da Cidade e o trazia de volta às seis horas da tarde. O bonde 19 levava consigo mais pessoas do que três ou quatro ônibus abarrotados de gente em cima de seu lombo: mal se via o bonde, que sumia por detrás de centenas e centenas de pessoas dependuradas nos seus balaústres. Era o bonde dos estivadores. Era um bonde vagabundo que ronceava ao longo do cais do porto. Era um bonde internacional e uma vez dentro dele, sempre alguma coisa podia acontecer. E nesse mundo novo, a Rua Xavier da Silveira cresceu em importância dentro de mim pelo espetáculo que oferecia. Porque nessa rua pareciam estar todas as prostitutas da cidade e do mundo. Eram centenas delas que se postavam pelas ruas em suas vigílias noturnas. Eram mulheres desinibidas, mulheres interessantes, que rebolavam para todos os bondes que passavam por lá. Isso dava ao bonde um ar matreiro e safado. Hoje, usando essa linguagem baixa e colorida do povo das ruas, ele seria um bonde que tinha tesão. Nenhum bonde de Santos tinha um ar tão sensual quanto o bonde 19. A Rua Xavier da Silveira era o seu leito pecaminoso. E o mar parecia lamber essas ruas com a mesma sensualidade com que as prostitutas do cais do porto deveriam se atracar com os marinheiros.
Com relação ao bonde 4, Salasar escreveu o que segue:
Mais do que nenhum outro, seria o símbolo da cidade, tal qual eu a via naquelas décadas passadas. O bonde 4 era atrevido, sólido e fugaz. Ele parecia ser tão imprevisível como a cidade ao longo da qual ele disparava. E quando aqueles prefeitos burros o arrancaram de seus trilhos, um pedaço da cidade morreu. A cidade de Santos, como de resto de todas as outras cidades brasileiras, aceitou tudo passivamente, sem se rebelarem. Essa passividade brasileira, esse bom-mocismo nas horas decisivas do país às vezes me assusta. Houvera nessa hora uma reação em cadeira de toda a nação contra transporte, simplesmente para favorecer as montadoras estrangeiras que aqui vinham se instalar, e ainda hoje teríamos correndo pelas ruas de todo o país, aquelas carruagens de fogo, como de resto acontece ainda na Europa e em muitas cidades americanas. Parece ser uma marcada característica do caráter brasileiro: chorar pela perda de coisas pelas quais não lutou. Me parece ser do caráter brasileiro esperar que as coisas simplesmente aconteçam.
Realmente, esse final do texto de Salasar nos faz refletir, e muito, pois existem somente verdades que devemos concordar, pois muitos de nós aceitamos as coisas sem dizermos nada, ou quase nada sobre um acontecimento prestes a surgir.
Um bonde trafegando na linha férrea da Av. Vicente de Carvalho. na
década de 1930. Uma observação: os casarões que acompanhavam as
avenidas da praia são hoje prédios de apartamentos. Acervo: L. J. Giraud
No artigo anterior, lembramos da figura do motorneiro, neste, vamos lembrar do condutor, nas palavras de Salasar.
O condutor foi uma figura pitoresca nesta fauna única de Santos, ali pelas décadas de 30, 40 e 50. Contam-se deles estórias fabulosas, como muitos deles eram corpulentos e suavam como uns labregos dependurados naqueles estribos externos dos bondes abertos, que corriam pelas ruas arenosas de Santos, sob uma soalheira de 40 graus á sombra.
Sinto por aqueles homens uma simpatia imensa e muitos deles, dentro daquela farda cor cáqui e sob aquele quepe típico, eram filósofos do cotidiano.
Não havia melhor agência de casamentos naquele tempo do que uma viagem de bonde em determinados períodos do dia. Muitos casamentos surgiram de uma simples troca de olhar nesses verdadeiros teatros a céu aberto, que eram os bondes.
Foto tirada do alto do Atlântico Hotel,
onde são vistos os trilhos e os bondes
trafegando pela Av. Presidente Wilson,
nas proximidades da Rua Marcílio Dias.
Na época, os jardins da praia estavam
recém inaugurados. – 1935.
Acervo: L. J. Giraud
O tema Bondes, na sua primeira parte foi muito elogiado pelos leitores. Passo aos amigos, quatro e-mails recebidos de João do Nascimento Anciães, Carlos Dufriche, Samuel Gorberg e Marcelo Tálamo, que mostram o quanto o bonde ainda é lembrado e querido pelos que utilizaram esse meio de transporte, como segue:
Parabéns pela matéria. Lembro com muita saudade dos bondes 19 e 29, nos quais eu embarcava nas esquinas das avenidas Pedro Lessa e Senador Dantas com a rua Benjamim Constant, local onde seu saudoso pai tinha consultório, rumo ao Ginásio Nossa Senhora do Carmo situado na rua Augusto Severo ao lado do Correio. Era uma farra. Uma gritaria. Todos queriam saltar do bonde andando na esquina do colégio. Ninguém descia no ponto em frente ao jornal A Tribuna. O motorneiro, sabedor da preferência dos jovens, reduzia a velocidade para que todos saltassem com segurança, o que não era muito apreciado por nós por causa do espírito de aventura. Mas, não era somente os estudantes que gostavam de saltar do bonde andando; nosso professor de matemática que vinha do Marapé no bonde 37 e que fazia ponto final na Augusto Severo, a mais ou menos 30 metros da porta do ginásio também usava desse expediente. Ele não descia. Aproveitava o tempo da parada final de mais ou menos 5 minutos para continuar a ler o seu jornal e saltava do bonde andando bem em frente à porta da escola. Infelizmente, pessoas de triste memória acabaram com tudo. O pior, sem consultar o povo. Veio de fora e aqui fez o que bem entendeu. É com tristeza que vemos nas grandes capitais européias os bondes trafegando e na nossa querida Santos temos que nos contentar, ainda bem, com os bondes turísticos. Espero que nossos governantes tenham a visão e estendam essas linhas até as praias e bairros como era antigamente. – João do Nascimento Anciães.
Foto raríssima da Rua General Câmara
entre as ruas Senador Feijó e Martim
Afonso, durante falta de energia momen-
tânea na Cidade. Nota-se bondes das mais
variadas linhas como o 4, 19, 10, entre
outros. Uma curiosidade são os automó-
veis da época como: Aero-Willis, DKW
Vemag, Volkswagens e um Dodge 1951
(o carro escuro). Foto clicada do prédio
de A Tribuna – 1966. Acervo: L. J. Giraud
Caro Laire, Meus parabéns por seu excelente artigo. Interessante e informativo. Em minha primeira viagem a Santos, em dezembro de 1949, fiz o passeio que me recomendaram os colegas de bordo: Toma o bonde 1, vai até São Vicente e volta. Lindo passeio foi aquele e a partir de então sempre aconselhava meus colegas que fizessem o mesmo. Fui a Santos inúmeras vezes e meu ponto favorito era o Gonzaga, bonde 2, apanhado ou no abrigo da Praça Mauá ou na esquina da Senador Feijó, atrás da alfândega. Lembro-me que no início da Ana Costa, de quem vem do centro, a barra lateral de proteção era mudada de um lado para o outro. Veículos limpos e eficientes sempre foram os bondes de Santos. Pena terem acabado com eles. – Carlos Dufriche – Rio de Janeiro - RJ
Laire, ao ler o seu artigo, senti no mesmo a sua entusiasta nostalgia dos bondes de Santos. Estive semana passada em Santiago e fiquei emocionado ao visitar o Museu Ferroviário. Existe em Santiago um parque muito grande chamado Quinta Normal. Pois disponibilizaram uma parte do espaço do parque e colocaram um exemplar de cada das locomotivas e vagões que participaram da história ferroviária do Chile, além de uma estação de trem. Esta área, devidamente cercada, compreende o Museu Ferroviário. Uma idéia simples que infelizmente não foi seguida por outros administradores públicos. Na década de 1960, quando o bonde foi desativado na cidade do Rio de Janeiro, os bondes foram queimados. Você já imaginou um museu do bonde na Quinta da Boa Vista, com um exemplar de cada linha? O custo de manutenção seria mínimo, e teríamos preservada a memória deste singular meio de transporte. Mais uma vez, repetindo o que já externei em outras oportunidades, parabéns pelo seu trabalho na preservação da memória histórica. Gostaria de republicar o seu artigo sobre os bondes de Santos na Carta Mensal, favor me enviar por mensagem as imagens em 300dpi. Tenho grande acervo sobre bondes, estou amadurecendo a idéia de fazer uma associação "Os amigos do bonde". - Samuel Gorberg – Rio de Janeiro - RJ
O famoso bonde 42, que fazia a linha Ponta da Praia – Praça Mauá, via
Av. Ana Costa, muito utilizados pelos frequentadores dos cinemas de Santos.
Na foto, o bonde está com as cores modificadas da original que era “verde-
city”, tão reclamado por Nelson Salasar Marques por descaracterizar a cor que simbolizava os bondes santistas. – 1970. Acervo: L. J. Giraud
Caro Laire, Muito gostoso de ler o texto. Parabéns pelo texto e pela oportunidade do mesmo, Santos realmente tem uma história invejável em termos de bondes. Poderia ter mais. Há bondes de Santos em Curitiba e, POR INCRÍVEL QUE PAREÇA, em Bertioga, em uma unidade do SESC. Por que não um esforço político para trazer esses veículos para a gente de volta? – Marcelo Tálamo
Ressalto que, tive o grande prazer de ter sido aluno de inglês do Prof. Nelson Salasar Marques, durante a minha passagem meteórica pelo Colégio Canadá nos anos 60, suas aulas eram sempre alegres e divertidas. Salasar era uma pessoa bem humorada e otimista. O que de certa maneira era repassado aos seus alunos, que pode ser constatado pelos que o conheceram. - Fica aqui a nossa homenagem ao grande Professor.
O Prof. Nelson Salasar, em primeiro plano, na companhia de amigos como
o construtor Abel dos Santos, o escritor e pesquisador marítimo José Carlos
Rossini, do advogado Enzo Pogianni, e do autor, durante jantar em 2000.
Foto: L. J. Giraud
Para fechar com chave de ouro este artigo, - um parágrafo de um dos Escritos sobre os bondes do poeta Narciso Andrade em A Tribuna, na década passada: “E eu fico pensando por que acabar com os simpáticos bondes aqui de Santos, substituindo-os por esses ônibus horrorosos?”
Felizmente, com o retorno do bonde turístico, as pessoas
podem sentir a sensação do que era andar de bonde. Na
foto, Yara Bastouly e Creusa Giraud na companhia de
familiares durante o passeio pelo Centro Histórico de
Santos, apresentando a foto, o Vovô Sabe-Tudo, figura do
passado, pois foi motorneiro dos bondes por várias déca-
das. Hoje o Vovô Sabe-Tudo explica aos turistas, várias
curiosidades do bonde. – 2007. Foto: L. J. Giraud
Digitação: Rubens Victor Pereira Júnior