Anos atrás, guardei um recorte de jornal do início dos anos 50, que encontrei entre as coisas deixadas por minha avó materna Bemvinda Giraud. Esse recorte continha um texto um tanto estranho contado por um viajante que vinha a bordo do transatlântico italiano Conte Grande, de Gênova para Santos, com escalas intermediárias em Lisboa e Rio de Janeiro. O fim da rota do navio era Buenos Aires, passando antes por Montevidéu, no Uruguai.
As partidas dos navios sempre obedeceram a um ritual próprio,
onde amigos, parentes e curiosos iam se despedir dos viajantes,
como a imagem que mostra a partida do nosso Cisne Branco Rosa
da Fonseca, partindo para um Réveillon no final dos anos 60.
Acervo: Laire José Giraud
Em certo trecho desse texto, o viajante, que se chamava Henrique, conta uma passagem de forma suscinta, o dia da passagem do Ano Novo, num ano da década de 30. É bom lembrar, que as pessoas na época, se divertiam de uma forma mais conservadora e recatada. As festas não iam até tão tarde como acontece nos dias de hoje. Como exemplo: à uma hora da madrugada, as pessoas começavam a se recolher às suas cabines, ao contrário de hoje, quando as pessoas, nesse horário, estão chegando para a celebração. Portanto, os hábitos no decorrer do tempo se modificam.
O transatlântico espanhol Cabo San Vicente, da Ybarra Y Cia.
passando pela Ponta da Praia, próximo à antiga ponte dos práticos,
em 1970. Acervo: José Carlos Rossini.
Nesse trecho, notamos que o viajante estava só, a bordo, cheio de recordações e vivia na realidade, além de ser um homem de aspecto sério, não se deixando levar pelas tentações causadas por uma bela passageira. Para que o leitor entenda o que quero dizer, transcrevo abaixo parte do referido texto, cujo título era Doce Vida de Bordo:
Doce Vida de Bordo
Depois da sexta, quando me vestia para ir tomar um chá, o garçom me entregou um convite do capitão. Endereçada a todos os passageiros para que compareçam a uma recepção, no salão de festas para a comemoração do Réveillon. Traje à rigor. O salão está deslumbrante O luxo não pode ser maior. A decoração com capas de arminho, reflexos de pérolas e brilhantes. Passam as espáduas desnudas das senhoras, as bandejas de doces, as taças transbordantes. Não sei por que estas luzes, estes risos, este desperdício de jóias e de champanha me recorda outras festas, na Europa, nos anos de minha juventude, quando a Europa era o paraíso do mundo. San Sebastian Biarritz, Ostenta: aquelas praias dos meus vinte anos, de amores e de sonhos, hoje recordo momentos inesquecíveis.
O belíssimo Giulio Cesare, um dos navios mais conhecidos no Brasil
em todos os tempos, ainda muito lembrado em Santos, Cidade por onde
passou incontáveis vezes. Sua armadora era a Itália di Navigazione.
Sua viagem inaugural se deu em 1952. Acervo: Laire José Giraud
A América é, indubitavelmente, o último refúgio da terra, o último campo de ação do capitalismo, da glória e da alegria de viver. Enquanto me absorvo nestes pensamentos, as palestras se animam. A diretora social do navio, loira, alta, desenvolta, apresenta os passageiros entre si. Aproxima-se a noite. O tempo, lá fora, é ventoso. A orquestra toca “fox-trots” e valsas. Leio o nome de vários conhecidos que ainda não encontrei. Por estes dias terei o prazer de apertar-lhes a mão. Ao fim do banquete, um passeio na coberta. Rose, uma das senhoras de Campinas, convida-me a passear. Vem-me o pensamento de que quer fazer exercício para não engordar. Duas voltas e nos apoiamos à amurada. “A lua – diz ela – o mar e...” Fica um instante em silêncio e eu me julgo no dever de acrescentar... “e a senhora”. “E nós”, corrige ela. Em outros tempos isto me pareceria romântico. Agora, sorrio e esclareço: “A senhora só. Eu sou um homem casado...” “Que importa?” – ela replica, com um sorriso. Convido-o a ir ao salão. A orquestra acompanha o cantor. O público fá-lo refletir. “O amor está me chamando”.
Bailes a luz da Lua
Ouço com pena e saudades as músicas de há vinte anos, os “fox-trots” do fim da outra guerra: “Chá para dois”, “Smiles”, etc. A noite dança-se na coberta. Vem do mar uma brisa suave. A lua resplandece no céu. Olho em volta, como se visse acontecimentos de ontem. As músicas são as mesmas. E os homens e as mulheres, também, são os mesmos, com vinte anos mais. Aqueles jovens e aquelas moças de vinte anos têm hoje, quarenta, estão mais envelhecidos. Com a diferença de que seus trajes ganharam em luxo. Seus “smokings”, então pretos, agora são brancos.
O norte-americano S.S. Brasil, da Moore McCormack Lines, adquiriu
logo após sua viagem inaugural para a América do Sul em 1958,
distinção particular entre os passageiros que se dirigiam para os
Estados Unidos. Acervo: Laire José Giraud
Nos bailes de coberta, à luz da lua, dançam pares de todas as idades. Harmonia de cores e de canto. Homens de cabeça branca têm nos braços jovens de vinte anos. Mulheres que são avós dançam, vaporosas e loiras, incansáveis, com os dançarinos mais hábeis. No mundo de hoje não há mais velhos, nem há mais jovens.
Para que a nossa imaginação nos leve descontraidamente, aos ambientes dos navios, vamos ilustrar o artigo mostrando um salão de jantar num ambiente de esplendor, uma festa de muita alegria, bem como navios brancos, de épocas passadas, no período entre 1930 e 1970. Justamente a alvura de alguns navios fazia com que muitos passageiros gostassem de passar o Ano Novo a bordo, cujo branco está associado à passagem ao novo.
Cena do salão de jantar do navio italiano
Conte Grande, durante celebração de gala
(1933). Acervo: Laire José Giraud
Com uma aura mágica, que sempre esteve presente nos navios que honraram e continuam honrando a Cidade de Santos, esta Coluna convida, os leitores para um cruzeiro simbólico, e um brinde de champanha, como se estivéssemos em uma grande festa de Réveillon a bordo do navio do seu coração, onde transborda alegria.
A todos, um Feliz Ano Novo.
Mais imagens:
Nos anos 50, a bordo do italiano Augustus, uma recepção de gala,
onde é visto entre os cavalheiros de smoking, João Fraccaroli (de
summer) e sua esposa Sra. Leonilda. Acervo: Lena Penteado Caldas
Na imagem, vemos o Cisne Branco Anna Nery, com as cores
do extinto Lloyd Brasileiro, navegando pelo Rio Amazonas. Esse
transatlântico foi um dos mais memoráveis da marinha mercante
do Brasil. – 1970. Acervo: Laire José Giraud
Na passagem de ano de 1965 para 1966, vemos Ézio Begotti em plena
diversão no salão de festas do transatlântico espanhol Cabo San Roque.
O francês esquecido Pasteur, como disse o amigo Wanderley Duck,
aqui lembrado na sua alvura e beleza, que o caracterizava – Anos 60.
Cartão-postal da Costa Cruzeiros, enviado
aos hóspedes de bordo no Natal das Flores
de 2002, no Costa Clássica.