Conheci João Emilio Gerodetti durante um garimpo pela feira de antiguidades do Bairro do Bexiga, em São Paulo, por volta de 1992.
De lá pra cá uma grande amizade cresceu. Trocamos cartões-postais e muitas informações.
Nas férias que Emilio Gerodetti passava em Santos, um dos
programas favoritos era ver a passagem dos transatlânticos
pela Ponta da Praia. Nesta fotografia, de autoria de José
Dias Hererra, o Conte Grande passando pela famosa murada.
(Reprodução: Acervo L. J. Giraud)
O amigo Gerodetti talvez seja o maior colecionador de cartões-postais do Brasil, e já lançou três livros com belas imagens, que não têm comparação com os já existentes.
Dificilmente serão superados pela qualidade e quantidade de cartões-postais que ilustram os mesmos.
Os livros são: “Lembranças de São Paulo – O Litoral Paulista nos Cartões-Postais e Álbuns de lembranças”, “A Capital Paulista” e “Interior”, três volumes lançados em parceria com Carlos Cornejo.
À direita, o menino Emilio Gerodetti, na passagem pela linha
equatorial do Planeta, vendo-se o Rei Netuno na viagem
feita a bordo do Conte Biancamano, da Societá Itália di
Navigazione, em 1951. (Reprodução: Acervo João Emilio Gerodetti)
Tive o grande prazer de escrever um texto no livro que enfoca o Litoral Paulista, lançado em 2001, que recebeu o título de “Doces Lembranças” , além da satisfação de ver três postais da minha coleção estampados na obra.
Anteriormente, o convidara para escrever um texto no livro “Santos e a Cia. das Docas – 1904”, que, diga-se de passagem, o original chegou às minhas mãos por indicação de Gerodetti a um marchand residente em Paris.
Ao elaborar o livro “Transatlânticos em Santos – 1901/2001”, voltei a convidá-lo para escrever um texto sobre navios juntamente com outros escritores, isto é, na seção “Na Linha do Tempo”, que foi um capítulo onde meus amigos escreveram sobre o tema.
Abaixo o texto de Gerodetti para o livro mencionado:
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Os Memoráveis Transatlânticos
João Emilio Gerodetti
Engenheiro Químico, Cartofilista e Autor de três livros
“A Capital”, “O Litoral” e “O Interior”
De paletó escuro, o menino Gerodetti com a família, vendo-se
seus pais à direita, durante jantar a bordo do Conte Bianca-
mano – 1951. (Reprodução: Acervo João Emílio Gerodetti)
Na minha infância costumava passar as férias em Santos e um dos programas favoritos era ir à Ponta da Praia ver os navios entrando e saindo do Canal.
Aí eu sonhava, quando os imensos cascos repletos de vigias, como inúmeros pequenos olhos de um monstro marinho, passavam, deixando um rastro de prata.
Podiam-se ver as pessoas a bordo: marinheiros de uniforme, movimentando-se no controle do monstro, passageiros debruçados nas amuradas, saboreando a experiência nova de uma viagem por mar, ou a expectativa de desembarcar num lugar desconhecido.
Franco Gerodetti, genitor de João Emílio, desembarcando
em Dacar, Senegal, durante escala do Conte Grande na vinda
- como imigrante - para o Brasil em 1937.
(Reprodução: Acervo João Emilio Gerodetti)
Muitos acenavam, deixando-me uma sensação de inveja por não estar em seu lugar. O enorme navio passava, saudando em despedida, com seu apito grave e prolongado, a cidade que o acolhera, ou pedindo licença para em seu porto entrar.
Outro programa, muito mais raro, era visitar um navio no cais. Foi necessária uma autorização no porto e lá fui eu, em 1950, percorrer as luxuosas dependências do Andes, navio de passageiros da Mala Real Inglesa, alimentando ainda mais o meu sonho de realizar uma viagem.
Finalmente, em fins de 1951, consegui realizar esse sonho, viajando para a Europa, a bordo do Conte Biancamano, da Societá Itália di Navigazione, e voltando, três meses após, pelo mesmo navio.
Belíssimo cartão-postal do Conte Biancamano, de 1927,
que foi um dos navios mais famosos de todos os tempos que
escalaram em Santos. (Reprodução: Acervo L.J.Giraud)
Eram anos em que nós, brasileiros, podíamos nos dar ao luxo de viajar como autênticos milionários, devido ao baixo custo de vida da Europa e ao alto poder aquisitivo de nossa moeda.
Assim, lá fomos nós, meus familiares eu, de primeira classe, um luxo só. Festas, banhos de piscina, jogos de bordo, jantares de gala.
Uma forte tempestade, na costa espanhola, fez o navio balançar muito, mas no fim foi mais uma das diversões de bordo, do que propriamente uma quase tragédia.
O Conte Grande, irmão do Conte Biancamano, com o casco
branco, nova pintura recebida no pós-guerra – Santos, 1950.
(Reprodução: Acervo L. J. Giraud)
Em 1961, estudante de engenharia, junto com alguns colegas fizemos a mesma viagem de ida no Giulio Cesare e de volta no Augustus, só que dessa vez em terceira classe, pela inversão da situação econômica acima descrita e também pelo fato de, como todo bom estudante que se preze, ter suas limitações de recursos.
Nunca poderei esquecer a saída do navio do Porto de Gênova, onde presenciei, de perto, as tristes despedidas dos emigrantes e seus parentes que ficavam no cais acenando, com a dúvida sobre o próximo reencontro, enquanto o navio lentamente se afastava. Enquanto isso, a algumas dezenas de metros adiante, os passageiros da primeira classe se despediam com um “até breve”, com confetes e serpentinas, ao som de uma banda tocando alegres marchinhas.
Até aquela época, os transatlânticos eram utilizados para o transporte de passageiros, sendo atualmente mais voltados para os cruzeiros de lazer.
O Conte Biancamano com as cores anteriores à Segunda
Guerra Mundial, e com a proa reta. Após o conflito, o
transatlântico recebeu proa lançada. (Reprodução: Acervo L. J. Giraud)
Meus familiares, todos de origem italiana, utilizaram-se desse meio de transporte para chegarem ao Brasil, sua pátria de adoção.
Meus pais vieram em 1937 com o Conte Grande, meus avós maternos fizeram várias viagens de ida e volta à Europa, nas Décadas de 20 e 30 com o Re Vittorio, Diulio, Conte Biancamano e Augustus.
Meus avós paternos transferiram-se para o Brasil após a Segunda Guerra Mundial a bordo do pequeno e valente Almirante Jaceguay , do Lloyd Brasileiro, que substituiu por algum tempo os grandes transatlânticos europeus, em sua maior parte afundados durante o conflito.
De todos esses registros, digno de nota é o mais antigo deles: um postal do navio alemão Prinzess Irene, da Nord Deutscher Lloyd – de Brêmen, enviado por meu trisavô paterno, Francesco Gerodetti, de Nova York, para sua mulher no Texas, onde viviam.
Transatlânticos da Itália di Navigazione atracados no Porto
de Gênova, Itália, em 1932. (Reprodução: Acervo L. J. Giraud)
O postal traz a data de 1906, quando meu antepassado regressava de uma viagem à Itália, onde fora visitar seu filho mais velho, meu bisavô paterno Emílio.
Curioso o detalhe: o pai emigrara para os Estados Unidos em 1883, enquanto o filho ficara na Itália, de onde seu neto, somente 54 anos mais tarde, em 1937, viera para se estabelecer definitivamente no Brasil.
Esse neto era meu pai, Franco Gerodetti.
Sem dúvida, os transatlânticos tiveram um papel importantíssimo na vida das famílias nestes últimos cento e poucos anos.
O salão de jantar do Conte Biancamano, com
decoração anterior à Segunda Guerra Mundial – 1932.
(Reprodução: Acervo L. J. Giraud)
Por isso é profundamente meritória a iniciativa de laire José Giraud em escrever este magnífico livro, onde todos nós poderemos viajar nas lembranças familiares, e nas asas da imaginação...
Depois deste belo texto, recomendo aos leitores para que adquiram as obras de João Emílio Gerodetti e Carlos Cornejo. Com a máxima certeza, não existe nada de melhor no gênero pictórico.
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Imagem de 1932 do Conte Biancamano. Depois da
Segunda Guerra Mundial, o interior do Conte Biancamano
foi modernizado, recebendo móveis e adornos.
(Reprodução: Acervo L. J. Giraud)
Finalizando, graças à minha amizade com Gerodetti, conheci vários cartofilistas e aficionados pelo tema, o que deu início a uma verdadeira confraria.
Entre eles, cito: Rubens Santos Marini, Maria Cecília F.M. da Silva, Eduardo Szazi, Clóvis Gonzales, Maria Eglantina de Azevedo Rezende, Monsenhor Jamil Nassif Abib, Sergio Friedman, Samuel Gorberg, Antonio Giacomeli, Edson de Lima Lucas (presidente da Acarj – Associação de Cartofilia do Rio de Janeiro), que se aliaram a outros, como os amigos José Carlos Silvares e João Augusto da Silveira.
Isso sem contar a aproximação junto a Fundação Arquivo e Memória de Santos, onde tive a honra de participar de várias exposições de imagens antigas, como, por exemplo, a dos bondes e a do Bairro do Gonzaga.