No último 2 de fevereiro, fez um ano que o Professor Nelson Salasar Marques nos deixou, por essa lembrança, a Coluna Recordar do PortoGente faz uma homenagem singela e póstuma ao Professor, que foi excelente mestre de inglês e grande escritor, que deixou várias obras contando passagens da Cidade nos anos 30, 40, 50 e 60 do século XX, que estão imortalizadas para todo o sempre nas suas agradáveis leituras.
Estação de trem da SPR - São Paulo Railway em
Santos, réplica de estação inglesa: no teto,
ostenta 4 leões, que simbolizavam o império britânico.
(Reprodução: Imagem do livro Lembranças de São
Paulo – O Litoral Paulista nos Cartões-Postais e
Álbuns de Lembranças, de autoria de João Emilio
Gerodetti e Carlos Cornejo)
Em 2000, relancei um livro pictórico, comemorativo aos 500 anos do Descobrimento do Brasil, intitulado: "Santos e a Cia. das Docas – 1904". Convidei amigos para que escrevessem textos com visões pessoais na obra.
Eram esses amigos:
- Narciso de Andrade, advogado e poeta, que foi colaborador de A Tribuna durante anos.
- José Carlos Silvares, renomado jornalista.
- Jaime Caldas, militar e historiador.
- José Carlos Rossini, pesquisador de assuntos marítimos, portuários e autor da "Rota de Ouro e Prata".
- Helena Maria Gomes e Viviane Pereira, jornalistas e escritoras.
- Antonio Ernesto Papa (irmão do atual prefeito de Santos), na época presidente da Fundação Arquivo e Memória de Santos.
- E, logicamente, o Professor Nelson Salasar Marques, grande apaixonado pelos trens, em especial pela companhia ferroviária São Paulo Railway, cuja carreira terminou em 1948, passando então a ser a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí.
A São Paulo Railway era conhecida como a Inglesa, por ser britânica.
Estação da SPR (companhia ferroviária também
conhecida como a Inglesa), em São Paulo: Estação
da Luz. Em Sydney, Austrália, existe outra
reprodução. A SPR de Santos foi totalmente impor-
tada do Reino Unido, de onde veio desmontada em
navios, no Século 19. (Reprodução: Acervo L. J. Giraud)
A seguir, o texto de Nelson Salasar Marques especialmente feito para o livro "Santos e a Cia das Docas – 1904", mostrando que nem tudo na vida é passageiro, pois as obras desse magistral escritor são perenes:
"Os Tempos Românticos da Inglesa e a sua Influência na Velha Santos"
Eu sou inimigo de datas. Nunca gostei delas. As datas pesam e eu acho que os pássaros nunca seriam capazes de voar se tivessem algum tipo de data na cabeça.
Comboio ferroviário puxado por uma locomotiva
que operava na Serra do Mar, conhecida como
"locobreque". Ao fundo, a Estação de Paranapiacaba
por volta de 1915. (Reprodução: Imagem do livro
Lembranças de São Paulo – O Litoral Paulista nos
Cartões-Postais e Álbuns de Lembranças, de autoria
de João Emilio Gerodetti e Carlos Cornejo)
Mas a pedido de Laire Giraud estou escrevendo este prefácio sobre a SPR, a famosa Inglesa, para o seu excelente trabalho que aqui vai impresso e não há como situá-la no tempo sem mencionar datas e épocas.
Santos, até a metade do Século 19, era um vasto mangue empestado e viver aqui seria uma aventura infernal, mas como nós tínhamos um escoadouro marítimo que servia de embarcadouro, a permanência de pessoas por estes lados era imperiosa.
A produção de café paulista descia serra abaixo como podia, no lombo de mulas que vinham pelo Caminho de Lorena e depois certamente seguiam a trilha aberta na serra pelo padre Anchieta e os antigos colonizadores portugueses.
Deveria haver algumas estalagens pelo caminho para troca dos animais e a acomodação dos tropeiros, e quem se aventurasse numa viagem dessas nunca estaria certo de voltar ao ponto de partida, porque os perigos eram imensos.
O legendário Trem Cometa, onde Nelson Salasar
Marques, na sua infância, viajou várias vezes entre
Santos e São Paulo. Juntamente com o Cometa,
existiam os trens Estrela e Planeta. (Reprodução:
Imagem de Brazilian Steam Album Volume II, de
autoria de Carlheinz Hahmann e Charles S. Small,
presente do amigo Marcelo Tálamo)
E eu imagino os viajantes que se dirigiam a Santos se despedindo das famílias, que ficavam para trás acenando lenços e rezando fervorosamente pela sua volta.
Sair alguém do planalto paulista e chegar até Santos naqueles tempos era epopéia e os autores de tais façanhas deveriam certamente se vangloriar delas pelo resto de suas vidas.
Mas, por meados do Século 19, Irineu Evangelista de Souza, o nosso barão de Mauá, já tinha pronto um estudo de viabilidade da construção de uma ferrovia descendo desafiadoramente a Serra do Mar e chegar em Santos com toda a segurança e rapidez.
Locomotiva típica da SPR, de fabricação britânica,
que ligava Santos a Jundiaí. Anos 40 do Século 20.
(Reprodução: Imagem de Brazilian Steam Album
Volume II, de autoria de Carlheinz Hahmann e Charles S. Small)
Com a ajuda desse estudo, o engenheiro inglês Daniel Mackinson, soberbamente escorado em capitais ingleses, lançou serra abaixo a malha de trilhos que alcançou Santos em 1867.
Foi façanha soberba jogar poderosamente serra abaixo aquela enfiada de vagões cheios de café e entregá-los junto aos navios em cerca de umas três horas.
Mas não foi só o café que a SPR nos trouxe. A SPR nos trouxe o requinte, o bom gosto e a civilização. Santos tornou-se cidade civilizada através dos trens da SPR.
Ali, naquele exato momento, deixamos de ser capiau do mato, para atingirmos o status de pessoa refinada.
Composição férrea, passando por uma localidade
nos Anos 50 do Século 20. (Reprodução: Imagem
de Brazilian Steam Album Volume II, de autoria
de Carlheinz Hahmann e Charles S. Small)
Era festa grande para o garoto da Década de 30 e 40 ficar postado junto às grades da Igreja do Valongo e ver chegar trem de São Paulo aos domingos de manhã.
Pessoas de casaca e gravata, de chapéu e de bengala, acompanhadas de damas de vestido longo desciam a Rua do Comércio até a Praça Rui Barbosa para pegar o bonde 10. Outras eram engolidas pelo bonde 14, que as esperava pacientemente na estação. E santista ir até São Paulo e conhecer a metrópole que tinha ar parisiense virou moda. Aquilo era um banho de civilização.
Era um banho de civilização ver os bondes camarões, as mansões da Avenida Paulista e a Estação da Luz. Havia um certo misticismo naquelas visões.
Composição de trens de passageiros, imagem que
foi muito familiar a Nelson Salasar Marques.
(Reprodução de Brazilian Steam Album Volume II,
de autoria de Carlheinz Hahmann e Charles S. Small)
Eu devo ser o santista que mais viajou nos trens da Inglesa. De 1935 até 1941 subia e descia a serra com minha mãe duas vezes por semana para ter sessões de massagem com um austríaco lá na Santa Casa perto do Largo do Arouche.
Meu pai era conferente da ferrovia e isso nos dava passe gratuito em primeira classe com direito às vezes ao trem Cometa. Eu conhecia todo o percurso como a palma de minha mão e vi muito sujeito valente tremer e se borrar nas calças de medo quando o trem atravessava aqueles viadutos por cima de precipícios que pareciam não ter fundo.
Os trens eram puxados serra acima por cabos de aço amarrados a uma máquina chamada de locobreque, cuja única função era brecar e parar o trem quando fosse necessário para saciar a sede daquela máquina infernal e valente.
Uma locomotiva locobreque (loco-brake), da São
Paulo Railway, que em 1947 passou a ser a Estrada
de Ferro Santos–Jundiaí, que muito auxiliou as
composições férreas no alto da Serra do Mar e,
conseqüentemente, o desenvolvimento do Estado
de São Paulo. Locobreque n.º 16, fabricado em 1901
por Robert Stephenson & Co. Ltd. (Reprodução:
Imagem de Brazilian Steam Album Volume II, de
autoria de Carlheinz Hahmann e Charles S. Small)
Uma viagem de passeio a São Paulo era inesquecível para um garoto comum e correspondia, em termos de comoção interior, ao que hoje seria uma viagem a Miami pela primeira vez.
Os preparativos começavam com muita antecedência: preparava-se um frango assado recheado de farofa, com azeitonas e pão. Havia pratos e talheres. Depois avisávamos todos os vizinhos para lhes dar água na boca e saboreávamos a inveja e o espanto deles.
Imagem de uma composição de passageiros ao
chegar em uma das estações do ABC – 1953.
(Reprodução: Imagem de Brazilian Steam Album
Volume II, de autoria de Carlheinz Hahmann e Charles S. Small)
Os garotos esperavam com ansiedade que o trem acabasse de subir a serra porque comer enquanto o trem estivesse na subida era muito difícil porque a inclinação do vagão era grande e derrubava a comida dos pratos.
O lugar da janela era disputado e havia brigas terríveis para consegui-lo.
Mas o fim da Década de 40 traria a Via Anchieta e a Via Anchieta já era a morte anunciada dos trens da Inglesa.
E numa noite do ano de 1948 eu vi, através das grades do pátio do Ginásio do Carmo, dos padres carmelitas, que ficava na Rua Augusto Severo, um luxuoso ônibus do Expresso Brasileiro, uma espécie de foguete importado que vinha descendo da Praça Mauá para ganhar a Praça da República.
Era um ônibus soberbo. Magnífico. Luxuoso.
Numerosos operários eram necessários para colo-
cação dos cabos de aço que movimentavam as
composições, na Serra do Mar-Piaçagüera, 1909.
(Reprodução: Imagem de Brazilian Steam Album
Volume II, de autoria de Carlheinz Hahmann e Charles S. Small)
Mas naquela noite começaria a agonia lenta dos trens da heróica SPR, ferrovia que foi criando cidades e civilização ao longo de seus trilhos mágicos.
Ferrovia que encantou os meninos de minha geração e cujos trens ainda nos aparecem em sonhos transpondo as porteiras do Brás, rumo à Estação da Luz.
Acordei de muito sonho tendo ainda fresca na memória a imagem do trem Cometa encostado junto à plataforma da estação da Inglesa, ali no Largo Monte Alegre, enquanto eu comia um chocolate suíço do bar dos irmãos Gallo, aguardando a minha vez de entrar naquela carruagem frenética que dali a pouco estaria voando ao longo dos mangues e das plantações de bananas do Cubatão até dar com os costados na raiz da serra.
- Nelson Salasar Marques - Professor, escritor, autor de "Imagens de Um Mundo Submerso", série em três volumes
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Deixo aqui expressos os meus sinceros agradecimentos aos amigos João Emilio Gerodetti, Carlos Cornejo e Marcelo Tálamo, pelo uso das imagens nesta homenagem ao Professor, que foi grande admirador de trens.
Para encerrar, agradeço a oportunidade de ter conhecido o grandioso Professor Nelson Salasar Marques, que foi um mestre da palavra, e os livros escritos são testemunhos deixados para a posteridade, para que as futuras gerações possam ter acesso ao conhecimento vivo da História de Santos no Século 20 através das memórias desse brilhante escritor.