Domingo, 28 Abril 2024

No livro 'Transatlânticos de Cruzeiros Marítimos – O Passado no Presente', que lancei este ano, há um capítulo dedicado ao navio de passageiros francês Normandie.

 

 

No capítulo, conto coisas curiosas e interessantes do glamouroso transatlântico, que esteve no Brasil nos Carnavais cariocas de 1938 e 1939.

Apesar de nunca ter feito escala em Santos, em vista da sua fascinante história, esplendor, fama, importância e grandiosidade, já foi mencionado em notas e artigos no jornal A Tribuna, além de protagonista de várias obras literárias.



Os rebocadores Moran, auxiliando a manobra
do Normandie no Porto de Nova York.

Relendo recentemente o livro Ocean Liners, do escritor estadunidense Gordon Newells, publicado em 1960, encontrei um texto interessante.

Newells relata uma situação insólita ocorrida durante uma manobra de atracação do mais famoso transatlântico de passageiros de todos os tempos, o Normandie.

Eis o texto:

"Durante a grande depressão dos Anos 30, do século passado, a linha francesa French Line investiu mais de 80 milhões de dólares em 83.423 toneladas de beleza, velocidade e luxo denominada Normandie.

Produto do Estaleiro Penhoet, de Saint Nazaire, França (o mesmo que construiu o novo Queen Mary 2), esse tremendo transatlântico foi o primeiro no Mundo a exceder o comprimento de 313,75 metros!

 

O Nomandie, deixando o Porto de Nova York. Ao fundo,

os grandes arranha-céus da cidade - 1936 (Reprodução).

 

Em sua viagem inaugural, em junho de 1935, as turbinas, gerando 160.000 HP, fizeram-no singrar o Atlântico a quase 30 nós (55,5 km/h) para ganhar a lendária Faixa Azul, que era o prêmio dado ao navio que atravessasse o Atlântico Norte com maior rapidez.

Nova York estava pronta para dar-lhe as boas-vindas, naquele perfeito dia de verão de 2 de junho.

Ao meio-dia, o enorme navio adentrou majestosamente a baía e aí foi um grande espetáculo.

Confete era jogado dos arranha-céus da cidade, os apitos soavam as boas-vindas ao novo rei dos mares.

Aviões e dirigíveis sobrevoavam e mergulhavam para lançar flores no convés. Uma flotilha de embarcações menores escoltava o Normandie lado a lado com barcaças de incêndio lançando jatos de água.

Bem próximo, 12 rebocadores da companhia Moran acompanhavam o navio, para atracá-lo.


Os experientes mestres dos rebocadores da

Companhia Moran não conseguiam entender

por que o prático de serviço no Normandie

apitava tanto – 1935 (Reprodução).

 

Na ponte, de comando do navio, o prático de atracação, capitão Anton Huseby, estava ao lado do prático da barra no porto de Nova York (na época utilizavam-se dois práticos) e do comandante do transatlântico, capitão René Pugnet.

A delicada tarefa de encaixar o gigantesco Normandie em seu berço (local de atracação) estava em suas mãos.

O prático e os rebocadores enfrentavam uma enorme tarefa. O calado mínimo do Rio Hudson, na altura de seu berço, era de 13 metros; o calado do Normandie era de mais de 12,5 metros.

Os rebocadores tiveram, por vezes, literalmente que empurrar o grande casco através da lama do fundo do rio.

O enorme navio passou pelo Leviathan, (antigo navio de passageiros) agora enferrujado e deserto, e apontou para o Cais da Rua 48.

Doze rebocadores, com esforço fizeram a água em volta espumar, à medida que seus mestres reagiam aos agudos silvos do apito (do tipo usado por policiais) do prático Huseby.

E aí, a massa do Normandie entrou em ação, momentaneamente desgarrando-se à deriva em direção ao píer.

 

Jovens senhoras ao lado do famoso navio de
passageiros no Porto de Le Havre, França – 1936 (Reprodução).

 

Rapidamente, Huseby deu ordens de máquinas atrás toda força, o lançante (cabo de amarração) foi preso no cabeço de atracação do píer e o navio sendo puxado vigorosamente pelos cabos.

O que havia causado a breve confusão entre os veteranos capitães? O capitão Huseby também ficou intrigado com o fato. O mistério foi solucionado por um dos suboficiais do Normandie.

Enquanto o prestígio do maior transatlântico do Mundo estava em jogo, o oficial encontrou um menino no convés dos barcos salva-vidas feliz, da vida soprando um apito de brinquedo, imitando o prático de atracação que se encontrava na asa do passadiço!"

Conceitos


Vale lembrar que o prático é o piloto que conduz o navio através de canais de acesso, trechos da costa, lagos e portos onde a navegação requer conhecimento da região.

 

O Normandie foi cenário de vários filmes nos Anos 30.

Aqui vemos o ator Charles Boyer e a atriz Irene

Dunne no filme Love Affair (Reprodução).


Rebocadores são pequenas embarcações com grande potência que auxiliam a atracação e desatracação dos navios.

Para melhor explicar, vale lembrar que os práticos dos portos e os mestres (responsáveis) dos rebocadores se comunicavam por meio de código de apitos de boca e dos navios.

Geralmente os apitos de boca eram dirigidos aos rebocadores que ficavam na proa (frente do navio) e os do navio, que ficavam nas chaminés, eram para os que auxiliavam na popa (ré).

Assim, um apito curto significava que o rebocador devia parar de puxar ou de empurrar o navio; dois apitos curtos eram para puxar ou empurrar; um longo, um curto, seguido de um longo, era sinal para largar o cabo de reboque.



Imagem do pôster publicitário, represen-
tando o Normandie, da Companie Générale

Transatlantique (CGT), a famosa French

Line – Anos 30.  (Reprodução).

 

Quando a embarcação estava sendo rebocada, um apito curto era para o navio ser puxado para boreste (lado direito); dois curtos, para ser puxado para bombordo (esquerda), além de muitos outros apitos com vários significados.

Esse meio de comunicação entre navios e rebocadores foi utilizado até a chegada dos walkie-talkies, por volta de 1972, trazido ao Porto de Santos pelo prático Felipe Schechter. Os práticos passaram a se comunicar mais facilmente com os rebocadores portuários.

O código de apitos ainda é hoje utilizado, nos casos de pane dos aparelhos de transmissão e retransmissão, segundo Fábio Mello Fontes, prático do Porto de Santos, grande amigo, com quem tive a honra de prestar exame para a categoria em 1969.

Lembro-me de que nos Anos 60, os navios apitavam muito mais do que atualmente, durante as manobras de atracação e desatracação.

Por razões óbvias, durante a noite os sons eram mais audíveis e, como pretendia ser prático, obtive junto ao meu tio por afinidade, o prático Gerson da Costa Fonseca, hoje aos 84 anos de idade, o código de apitos de manobras.

 

Na antiga sede da Praticagem de Santos, um grande ícone

brasileiro do setor, o prático Gerson da Costa Fonseca, 84

anos (à direita), que atuou durante quase 40 anos na barra

e no porto, na companhia de André Poyart, Ismael Castanho

e Fabio Mello Fontes – Novembro de 1998 (Reprodução: Foto de L. J. Giraud)

 

Assim, através da audição e imaginação, acompanhava da casa de meus pais - que ficava na Avenida Almirante Cochrane, 104 (hoje uma pizzaria), no Canal 5 - as manobras realizadas pelos práticos.

Diga-se de passagem, quando menino e rapaz, tive oportunidade de conhecer práticos que deixaram os nomes gravados no livro de ouro do Porto de Santos.

Entre eles:


Teóphilo Quirino,
José Domingos Silveira,
Raul Marinho de Mesquita,
Edmar Botto de Mello,
Aquiles Tacão,
Milton Console,
Afonso Godinho
Salvador Godinho,
Alberto Carlos Praça,
Felipe Schechter,
José Console,
Ismael Castanho.

 

Na famosa terceira mesa do Café Paulista, em Santos, vemos o

poeta Narciso de Andrade (de paletó azul-marinho), na companhia

de Dario Gonçalves, Jaime Caldas, Laire Giraud e Benê Siqueira – 1996

(Reprodução: Foto do Acervo L. J. Giraud)

 

Na época o jovem Fábio Mello Fontes, hoje Presidente da Praticagem de Santos, chegou a fazer parte desse legendário time de pilotos da barra e do porto, e ele continua na ativa junto à nova geração de pilotos portuários.

Esses práticos pertenciam a uma época em que manobrar navios exigia arte, em que era necessário saber usar com habilidade o conjunto leme e propulsor, para navegar de acordo com corrente, maré e vento, além de raciocínio rápido e coragem.

Hoje, todos esses atributos são necessários, mas, no lugar da arte, entra a técnica. Os navios modernos dispõem de cada vez mais recursos tecnológicos avançados, como bow thruster (impelidores de proa).

Os comandos e lemes foram substituídos por joysticks e muitas outras novidades do mundo marítimo contemporâneo.

Os encantos que os apitos dos navios exerciam na Cidade eram tantos, que lembro do amigo e poeta Narciso de Andrade, que me foi apresentado no Café Paulista por Benê Siqueira.

Crônicas inspiradas

O inspirado Narciso de Andrade menciona os apitos dos navios em vários dos seus escritos, que eram publicados aos domingos em A Tribuna. Confesso que sinto muita falta dessa leitura, que contava várias lembranças da Cidade.

Outros que merecem ser gravados no livro de ouro do Porto de Santos - e fizeram menção aos apitos dos cargueiros - são o poeta e jornalista Roldão Gomes Rosa e o poeta Rui Ribeiro Couto, ambos falecidos.

Também deve ser lembrado Nelson Salasar Marques, autor de livros memoráveis sobre Santos, com passagens interessantes, fascinantes e inesquecíveis sobre o porto e, claro, os apitos das embarcações (veja coluna em tributo a ele clicando aqui).

Mantenho correspondência com um apaixonado por navios, Júlio Augusto Rocha Paes, de São Paulo, que também menciona sempre os apitos dos cargueiros. É um amigo que gosta de pintar aquarelas de embarcações.

 

O autor da coluna Recordar na companhia do prático

Alberto Carlos Praça, pouco antes do seu falecimento,

em 1999. Praça foi grande amigo, de quem obtive grandes

ensinamentos durante os acompanhamentos nas

manobras de navios no Porto de Santos. Ao fundo, nas

molduras, os retratos dos fundadores da Praticagem local,

práticos Cervetto e Sebastião Couto.

(Reprodução: Foto do Acervo L. J. Giraud)

 

Este artigo é uma homenagem acompanhada de um grande e sincero abraço ao advogado e poeta Narciso de Andrade, com quem aprendi e tomei conhecimentos de muitas coisas interessantes da Cidade, naquelas tardes em que um grupo de interessados nas coisas de Santos se reuniam na terceira mesa à esquerda de quem entra no Café Paulista.

Dentre os participantes estavam Jaime Caldas, Valdemar Capela, Waldir dos Santos, Dario Gonçalves, Clóvis Massile e Benedito Teodoro de Carvalho Siqueira, entre outros.

O interessante dessas tertúlias, cujo período foi entre 1994 e 2000, é que, apesar de eu e Benê Siqueira sermos em média 20 anos mais jovens em relação à maioria do grupo, o entendimento era perfeito – como se todos fôssemos de igual faixa etária, cada um contando certas passagens da vida.

Por isso, pelo seu passado e pelo seu presente, continuo achando que o tradicional Café Paulista é uma verdadeira fonte de sabedoria, local por onde as pessoas ilustres da Cidade, com certeza, passaram.

Para quem não é de Santos, fica o convite para conhecer o Café Paulista, inaugurado em 25 de março de 1911, como resultado dos áureos anos da exportação de café. O endereço: Rua do Comércio, na esquina com a Praça Rui Barbosa.
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