Para recordar o Centenário da Inauguração do Bonde Elétrico em Santos, no próximo dia 28 de abril, nada como lembrar através do opúsculo “Minha Cidade” de Waldemar Barbosa Trigo, que com muito humor e inspiração relata o itinerário dos bondes da Cia. City, utilizados pelos habitantes de Santos e São Vicente.
“O bonde 1 tinha fama de ser rápido. Era o campeão. Temível engolidor de quilômetros, saía ali da Praça dos Andradas, dirigia-se à Rua São Leopoldo, atravessava o Bairro Chinês, passava pelo Quartel da Polícia, e, em três tempos, estava diante do Cemitério do Saboó, a grande necrópole da cidade. Depois, embarafustava pelo caminho do Matadouro e ia sair em São Vicente, correndo como um foguete e pulando como cabrito sobre a linha da Sorocabana que vai para Juquiá!
Um dos bondes remanescentes da Cidade,
atualmente cirulando como bonde turístico,
aqui visto na Rua do Comércio passando
pela Casa da Fontaria Azulejada (1865). Esse
bonde foi construído na Escócia, em 1904.
Antes pertencia ao serviço de transporte de
Toronto-Canadá. Foto: Secretaria de Turismo
de Santos.
O bonde 2 seguia o itinerário para São Vicente. Mas era mais moroso tinha ares de “grã-fino”. Só andava por lugares escolhidos. Pelas praias do Gonzaga, José Menino... Quiseram mudar-lhe a rota, fazendo-o passar pelos lados do Campo Grande, mas ele perguntou se não se enxergavam e ficou nisso mesmo...
O bonde 3 fazia o trajeto da Praça Rui Barbosa ao José Menino. Tinha ares de importante. Transportava gente que cheirava a operações bancárias, negócios de títulos e grandes corretagens de café.
O bonde 4 partia dos fundos do Paço Municipal e seguia para a Ponta da Praia. Era o bonde das alunas do Escolástica Rosa e dos atletas do Saldanha e do Vasco, que contavam prosa, falando grosso em formidáveis “bagrinhadas”.
O bonde 5 pertencia ao Macuco. Não contava muita prosa. Levava as mocinhas das lojas e das Casas de Dois Mil Réis (como era conhecida as Lojas Americanas) empregados de escritórios e operários. Era um bonde sizudo, preocupado com a vida...
Encontro do passado com o presente (em 1909), bondes puxados
a burros e à direita um bonde elétrico. O cartão-postal mostra a
Praça Ruy Barbosa, tendo ao fundo o antigo prédio dos Correios, que ainda existe. Acervo: L. J. Giraud.
O bonde 6 andava dormindo nos trilhos. Ia da cidade para a Vila Matias e voltava, com ares de quem não levava a vida a sério.
O bonde 7 estendia uma volta completa pela praia, como quem não tinha o que fazer. Saía da cidade para a Vila Nova, em direção á Avenida Conselheiro Nébias, passando pelo Boqueirão até alcançar o Gonzaga. Aí, envergonhado da sua vagabundagem, mudava de número. Passava a ser o doze e voltava desconfiado para a cidade, arrastando-se pela Avenida Ana Costa...
O bonde 9 era meio fúnebre. Passava por detrás do Cemitério do Paquetá e batia-se para a cidade, como que aliviado...
O bonde 10, um bonde sério! Tinha ares de cavalheiro idoso. Que não se metia com ninguém, saía da Praça Rui Barbosa, no seu andar estugado, alcançava a Avenida Conselheiro Nébias, enveredava a Alexandre Herculano e dava a volta na estátua dos Irmãos Andradas. Parecia que não gostava do mar.
O bonde 11 era o que menos andava. Entrava ano e ele naquela boa vida, no “dolce far niente”. Diziam que era o mais caro...
O famoso bonde 2, que ligava Santos a São Vicente. aqui visto
na divisa das duas cidades, tendo ao fundo a conhecida Ilha de Urubuqueçaba - 1910. Acervo: L.J.Giraud.
O bonde 13, um bom banhista... não saía das praias. O 14 parecia que estivera muito tempo no interior. Todo trem que chegava ele corria a esperar. O bonde 15 era chamado o “Bonde do Cais”. Servia aos marinheiros, pessoal da Estiva, funcionários das Docas, Alfândega, casas de despachos, companhias de navegação. Dava voltas enormes. Não possuía tempo para nada. Vinha da Bacia do Macuco até a estação da Inglesa e vice-versa.
O bonde 16 era o bonde da paciência... ia para a Nova Cintra e esquecia-se de voltar...
O bonde 17, sempre muito ocupado, andava repleto de passageiros. Trafegava entre o Campo Grande e a Praça dos Andradas.
O 18 não saía do desinfetório. Cada vez que passava pelo Mercado, corria para o desinfetório...
O 19 parecia o bonde da Estação. Respondia pela ligação entre a “gare” e os navios atracados.
Um verdadeiro encontro de bondes na praça mais famosa
de Santos, a da Independência. Na foto vemos a Av. Ana
Costa, Rua Marechal Deodoro, o legendário Cine Atlântico, o
Edifício Lutécia, onde funcionou o Restaurante Dom Fabrizio.
Por volta de 1954. - Acervo: L.J.Giraud.
O 21 era conhecido como o “Bonde Funerário”. Estava sempre no Saboó.
O 23, sempre companheiro do 13. Bonde de chapéu de palha e maiô. De São Vicente à Ponta da Praia. O 24 era o bonde dos viajantes, sempre cheio de valises e gente vermelha que ia apanhar o trem, ou do trem para os hotéis da praia.
O 27 era o bonde de Vila Belmiro. Bonde que andava jogando futebol da cidade para o estádio do Santos Futebol Clube.
No cartão-postal de 1950, vemos o bonde 22 passando pela rainha
das praças de Santos, a Mauá. A esquerda o Palácio José Bonifácio,
sede da Prefeitura Municipal de Santos. - Acervo: L.J.Giraud.
O 29, que andarilho! Cansava-se de andar da estação para a praia, passando pelo cais, Macuco, Vila Jóquei...
O 37 era chamado o bonde das moças bonitas. Servia o Marapé e adjacências...
Afora esses, havia os rápidos, os X e Y, bondes fantasmas que surgiam inesperadamente numa esquina e não respeitavam ninguém. Um perigo!”
Através de imagens, e recordações de pessoas que vivenciaram o melhor transporte urbano que Santos já teve, vamos ver alguns relatos do poeta Narciso de Andrade e do Prof. Nelson Salasar Marques.
O bonde teve uma função social que muito poucos ainda se deram conta: ele socializou o homem. O bonde acabou com o aristocrático mundo das cabeças, das carruagens e dos tílburis, onde as pessoas se isolavam em extratos sociais elitizantes e fechados, e invadiu as ruas do mundo misturando as gentes sem pedir licença e pondo-as em convívio humano obrigatório.
Na imagem de 1957, vemos o abrigo para passageiros de bondes
do Gonzaga, o Hotel Atlântico e os hotéis Belvedere e dos
Bandeirantes, demolidos para dar lugar a prédio de apartamentos.
Ainda restam alguns abrigos de bondes (DEVERIAM SER
TOMBADOS), na Av. Ana Costa, no Boqueirão e na Praça Mauá.
Quem viveu a época dos bondes sabem dessa verdade. – Extraído do artigo “Bondes: carruagens de Fogo”, de Nelson Salasar Marques, publicado em A Tribuna, domingo – 11/11/1990.
Segundo o poeta santista Narciso de Andrade, viajar de bonde “não era uma coisa monótona, como pode parecer, por causa daqueles negócios de estar preso aos trilhos. Os bondes de Santos, os autênticos, aqueles pintados de verde, o famoso Verdecity, eram abertos. A gente viajava na paisagem. Cada viagem era uma história, porque acontecia de tudo. Encontros com amigos, início de namoro, papos eternos sobre futebol, política, mulher”.
O inspirado Narciso conta que pegar o bonde andando era uma arte e saltar quando em velocidade maior (oito ou nove pontos na marcação da maçaneta comandada pelo motorneiro), um capítulo à parte.
Alguns eram verdadeiros artistas, perfeitos no lance. Pegavam o bonde na maior velocidade: de frente, de lado, de costas. Nisto se destacavam os jornaleiros.
Um bonde típico de Santos, aqui vemos o 37 que fazia a linha do
Marapé. Esse era um dos grandes, e tinha a cor "verdecity", um
verde marcante. Eram bondes, como disse Nelson Salasar Marques,
sem igual no mundo devido suas formas. Reprodução.
Lembro do bonde com muitas saudades, principalmente porque conhecia muitos condutores e motorneiros. Meu pai era médico do sindicato da classe – o Sindicato de Transportes Carris Urbanos de Santos, que ficava na Praça José Bonifácio, em frente à Catedral.
As imagens dos antigos bondes levam-me de volta ao ano de 1954, quando minha mãe levou-me ao ponto do bonde, no Canal 5, para apanhar o bonde sozinho com destino ao Centro, onde meu pai, com um sorriso, estava à minha espera. Viajar de bonde sozinho era uma grande ambição dos meninos de ontem, e com a volta do bonde, agora como meio turístico fazendo o roteiro histórico, os meninos de hoje podem viver a emoção que tive naquela longínqua década.
Exatamente há cerca de 100 anos, no dia 28 de abril de 1909, surgiu o bonde elétrico, que era explorado pela empresa britânica The City of Santos Improvements Company Ltda (CSIC), conhecida simplesmente como a City. A empresa explorava os serviços elétricos e o serviço de transporte urbano. Além dos serviços de bondes, chegou a possuir na década de 1930, algumas linhas de ônibus. Ao lado da São Paulo Railway, foi uma das empresas mais atuantes em todos os tempos, na Cidade.
É bom lembrar que os bondes puxados a burros surgiram em 1873, cujo trajeto era do Centro ao Boqueirão. Nas outras principais avenidas, surgiram em 1875.
Na Rua Augusto Severo, diante da Casa Ferreira de Souza, loja
que funcionou por mais de 100 anos, vemos um bonde camarão,
com as novas cores que foram adotadas pelo serviço municipal de
transporte nos anos 60 do século passa. Bem que os bondes camarão poderiam estar rodando pelas ruas de Santos, num sistema misto
com os ônibus. Foi grande falta de raciocínio! - Foto: Reprodução.
Por volta de 1917, Santos possuía 220 bondes. Eles percorriam quase 150 quilômetros de trilhos. Corriam pelos trilhos da Cidade vários tipos de bondes, como o Periquito (pintura verde), o Articulado, que era um conjunto de dois bondes ligados, e o Camarão, que era um bonde fechado.
Voltando ao saudoso prof. Nelson Salasar Marques, na sua obra Imagens de um Mundo Submerso – Volume I, lançado em 1995, lembra do motorneiro, como uma figura inesquecível, e eram em sua maioria, portugueses, geralmente dependurados em grandes bigodes negros. Eles lutavam como um demônio com aquele monte de alavancas e pedais massudos. Era uma luta épica em que aqueles bravos lusitanos ganhavam sempre. Mais tarde, quando chegaram os bondes maiores e mais refinados, todo aquele sistema diabólico foi reduzido a um pequenino jogo de chaves, e o motorneiro passou a ser uma figura mais discreta: já parecia um comandante de navio.
Os bondes de Santos eram originais e únicos em sua forma visual e estética: eram de linhas retas e tudo nele lembrava a concepção grega das formas. Em São Paulo, no Rio, em Campinas, nos países da Europa por onde andei, todos eles tinham aquelas extremidades abauladas, arredondadas, enfim, veículos padronizados.
Então, aqueles bondes únicos no mundo começaram a ser lentamente desfigurados por administrações e administradores que queriam deixar na cidade marca de sua passagem. E aquelas carruagens de fogo e majestosas, que tinham a agressividade e a elegância de uma biga romana em campo de batalha, foram sendo mutiladas criminosamente, suas formas alteradas, a cor passando do verde original, um verde forte de planta viva, para um prateado manchado de vermelho. E o que tínhamos para o fim eram trambolhos disformes que se arrastavam pelas ruas humilhados e ofendidos.
Já no ano de 1971, como disse, o bonde chegou ao fim em nome do progresso, foram trocados por ônibus de uma famosa marca, mas com durabilidade baixa, ao contrário dos bondes elétricos, que trafegaram por mais de 07 décadas. E com um detalhe: o transporte não melhorou em nada com a substituição dos bondes pelos ônibus – Era melhor com os bondes.
Segundo o radialista e jornalista Geraldo Nunes (Rádio Eldorado), na sua obra - São Paulo de Todos os Tempos 2001. – Bonde é uma palavra brasileira, tanto que em Portugal esse tipo de transporte é chamado de elétrico. Bonds, em inglês quer dizer ações. O investimento da Light (empresa canadense) na instalação de bondes elétricos, primeiro no Rio de Janeiro e depois em São Paulo (07/05/1900), significava mais bonds na Bolsa de Nova Iorque.
Fica aqui a recordação “Centenário do bonde”, um veículo seguro, limpo, econômico e que não polui o meio ambiente, que inteligentemente funcionam como transporte coletivo nas principais cidades do mundo como Lisboa, Genebra, Zurich, Milão, Roma, Nova Orleans, e muitas outras. – Como lembrança e consolo ainda nos restam os bondinhos turísticos, que circulam pelo nosso Centro Histórico.
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Nota: Com pesar a coluna Recordar presta homenagem póstuma ao despachante aduaneiro José Luiz de Oliveira Martins, falecido no último 22 de março, vitima de enfarte. José Luiz foi sócio do autor desta coluna por 33 anos. Foi um bom pai, bom marido e sempre dedicado ao trabalho. Ficam aqui as nossas saudades.