Casei com uma moça nascida na Ilhabela, Creusa, que passou a infância em São Sebastião, fez o primário no Colégio Henrique Botelho. Filha da professora Henriqueta Mendes do Rego, que lecionou por muitos anos na Escola Barnabé em Santos, viúva do despachante aduaneiro Joaquim Mendes do Rego, falecido em 1961.
Na cidade de São Sebastião, de 1950, vemos a profa.
Henriqueta Mendes do Rego sentada ao lado do marido
Joaquim Mendes do Rego, sobre as pedras da praia Pontinhas.
Acervo: Creusa Giraud
Com isso, quero dizer que sempre ouvi minha sogra falar das lanchas da Companhia Santense de Navegação, que junto com os navios do Lloyd Brasileiro, da Companhia Nacional de Navegação Costeira e da Cia. Carl Hoepcke, foram os principais meios de transporte entre Santos e as cidades do Litoral Norte do Estado de São Paulo, principalmente porque os meios de ligação terrestre eram precários.
Mas nunca tive grande interesse em saber mais detalhes dessa heróica empresa. Em certa ocasião, ouvi minha sogra dizer que a casa da chácara Pontinhas, que ficava de frente ao canal de São Sebastião, foi construída com material comprado em Santos e transportado para São Sebastião pelas lanchas da Santense.
Recentemente, recebi um e-mail do professor Andrea Ciacchi da Universidade Federal da Paraíba, que dizia estar escrevendo um texto que deverá virar livro, relatando a trajetória da Gioconda Mussolini (1913-1968) que dedicou toda a sua vida realizando pesquisas sobre os caiçaras do litoral de São Paulo, em particular da ilha de São Sebastião.
Na foto, Joaquim Mendes do Rego, Isabel, Henriqueta, uma
senhora da família, Lucila e Eduardo Peixoto. Ao fundo, a
aconchegante casa cujo material foi transportado de Santos
para São Sebastião através de uma das lanchas da Santense.
Acervo: Creusa Giraud
Como as suas primeiras visitas à ilha começaram em 1944 ou 1945, estou agora curioso sobre os meios que ela utilizava para ir até lá.
Dizia, ainda, que tinha relatos sobre os vapores da Companhia Santense de Navegação, que iriam de Santos a Ilhabela, além de Ubatuba e Caraguatatuba.
Após esse interessante e-mail, quis saber um pouco mais sobre a Santense, e recorri ao sr. Carlos Alberto Piffer, que foi diretor da Companhia Docas de Santos (CDS) e da Deicmar, pai do conhecido fotógrafo Marcos Piffer, que já editou livros pictóricos de Santos de alta qualidade no estilo padrão das grandes cidades do planeta.
Num belo cartão-postal dos anos 50, mostrando a beleza de
São Sebastião. Acervo: L. J. Giraud
Prontamente, o sr. Piffer atendeu a minha solicitação através de um e-mail rico em detalhes e informações, que repasso aos leitores sem qualquer tipo de mudança no texto, por achá-lo muito interessante. Eis o texto:
A Lancha “SANTENSE”
Este não era o seu verdadeiro nome e sim o da sua proprietária a Companhia Santense de Navegação. Seu nome verdadeiro era Mestre qualquer coisa... não me lembro ao certo; se alguém souber, peço que me informem.
Construção robusta, casco e superestrutura de madeira, devia ter uns vinte a vinte e cinco metros de comprimento, um salão grande na frente, rodeado de janelas, lembrando um pouco a lancha do Clube de Pesca de Santos, só que maior. Esse salão tinha bancos em seu redor, onde os passageiros se acomodavam como podiam.
Uma das robustas lanchas da Santense que entraram em serviço
em 1945, atracada no píer da Bertioga. Imagem: Novo Milênio
Para trás ficavam a casa de máquinas, com um motor diesel de um único cilindro e uma pequena casa de comando, em nível um pouco mais elevado, que se alcançava por meio de alguns degraus – cerca de quatro ou cinco. Ainda atrás, outras dependências como uma pequena cozinha, sanitários e no porão, acredito, o alojamento da tripulação. Não me lembro bem desses detalhes.
Ligava algumas cidades do litoral norte: partindo de Santos, parava em São Sebastião, Ilhabela, Caraguatatuba e Ubatuba. Creio que essa era a sua última escala. De lá, sentido inverso, escalava novamente aquelas cidades, retornando a Santos.
Transportava pessoas, suas bagagens e alguma carga miúda, pouca coisa. Era o meio de transporte dos caiçaras de menor posse, que não podiam viajar nos paquetes de então: o Aspirante Nascimento, do Lloyde Brasileiro e os Itas da Companhia Nacional de Navegação Costeira – a Costeira, como era mais conhecida. A passagem nesses navios custava cerca de 18$000; na Santense devia custar por volta dos 5$000 a 8$000.
O atracadouro de onde partiam as lanchas da Santense, que ficava
no local de onde saíam as lanchas do Itapema, hoje Vicente de
Carvalho (Guarujá). Ao fundo, o prédio da Alfândega do Porto de
Santos. - 1939. Acervo: L. J. Giraud
Fiz uma única viagem para São Sebastião com a Santense. Ela tinha um “pontão” próprio – flutuante para embarque e desembarque dos passageiros - atrás da Alfândega, junto do flutuante das barcas do Guarujá.
Era uma manhã de domingo ensolarada – Janeiro de 1941 ou 42 - e a partida deu-se por volta das oito horas; não me lembro ao certo. O primeiro trecho da viagem era pelo Canal da Bertioga, o que vale dizer, sem balançar e com todo mundo a bordo animado e comendo seus lanches: cada qual levava o seu farnelzinho, pois a bordo não se servia comida. Terminado o trecho do canal, adentrando-se o mar aberto, embora o tempo estivesse magnífico e o mar calmo, a lancha começou a “jogar”, o que vale dizer: mudou o clima a bordo. Aqueles com alma de marinheiro, como meu irmão José e minha prima Maria Lúcia, continuavam comendo, rindo e brincando. Já eu, que enjoava até nos bondes, ficava debruçado na janela, admirando o mar e entregando ao mar o conteúdo do meu estômago vazio.
Dessa viagem, algumas imagens encontram-se ainda gravadas na minha memória, como a de uma “frota” de caravelas, aquele tipo de água viva tão linda quanto perigosa, que neste último verão andou assustando os banhistas das praias do litoral sul. No meio da tarde maravilhosa, a Santense passou no meio da flotilha, e da janela onde me achava apreciando o mar entre um enjôo e outro, fiquei admirando a coleção das belas formas rosa-arroxeadas empurrada pela ação do vento. Ou ainda outra imagem, na proa, do lado de fora do salão de passageiros, três condenados, escoltados por um único “meganha” de fuzil Mauser à mão, que iam cumprir pena na colônia da então chamada Ilha dos Porcos.
Ao cair a noite, duas ou três lâmpadas mortiças conferiam um tom lúgubre ao ambiente, digno de um navio negreiro. Ao entrar no Canal de São Sebastião a lancha milagrosamente parou de jogar e os passageiros mareados foram aos poucos recobrando o ânimo, com a expectativa da chegada. Escuridão total do lado de fora, exceto pelo céu estrelado. De repente, ao longe as luzes amareladas de São Sebastião e logo mais, surgindo do nada, a sombra de uma canoa de voga, com meu avô Emygdio Orselli na proa, lampião de querosene na mão.
O atracadouro, ou pontão, como também era chamado o local de
atracação das lanchas onde é visto uma das barcas do Itapema, antigos
guindastes movidos a vapor, o prédio da Alfândega, à direita, o local
onde funcionava o Restaurante Marreiro, hoje estacionamento da
Alfândega e o Monte Serrat. Imagem de 1934. Acervo: L. J. Giraud
Meu avô era agente do Lloyde Brasileiro e da Santense em São Sebastião e uma das suas funções era a de levar e trazer os passageiros na canoa de voga, visto que não só os navios como a lancha, sem cais para atracar, fundeavam ao largo. Motor parado, as duas embarcações encostam costado a costado e começam as despedidas entre os que descem e os que seguem viagem. Os que descem passam para a voga, sempre seguros pelas mãos fortes dos “camaradas” – eram assim chamados os remadores da equipe do meu avô, suas bagagens sendo também transferidas. Nunca se soube de alguém que por descuido tivesse caído no mar – mesmo aqueles que vinham de navio e tinham de usar a escada de portaló.
Tempo de viagem: Doze horas. Disse para mim mesmo: na Santense nunca mais!
Em tempo
Existiam outras lanchas que faziam reboque de chatões de bananas e laranjas de sítio e fazendas da região. Uma dessas fazendas pertencia à Blue Star Lines, em Caraguatatuba, mais precisamente no local chamado Porto Novo (fica entre a Praia do Barro e Caraguatatuba). Essa fazenda após a guerra entrou em decadência e acabou vendida para a Falchi, do então governador Ademar de Barros. Creio que o Laire Giraud tem uma foto de um navio da Blue Star embarcando laranjas de chatas, ao largo, no Porto Novo.
Navios como o Pará do Lloyd Brasileiro escalavam na cidade de
São Sebastião, fazendo a ligação com outras localidades brasileiras.
Cartão-postal de 1930. Acervo: L. J. Giraud
Se bem me lembro eram três as lanchas: uma delas chamava-se Marçal, a outra Valença e a última Apolo. Essas tinham motor possante, pois às vezes traziam até três chatões a reboque. Transportavam também passageiros no convés, visto não possuírem acomodações para os mesmos. Em dias de temporal, comum naquelas bandas, dizia-se que o mar entrava por uma borda e saía pela outra lavando todo mundo. Essas lanchas paravam em todas – ou quase todas as praias do Litoral Norte: Barequeçaba, Boissucanga, Maresias, Una, Toque-Toque, etc. representando um importante elo de integração entre essas comunidades. Aqui em Santos atracavam na Bacia do Mercado e para passar debaixo das pontes ferroviárias da CDS sobre o Canal do Mercado tinham de arriar o mastro.
Até aqui chegaram as minhas lembranças: ufa, que não foi pouco! Aos poucos os nomes foram retornando, a saudade chegando e foi bom recordar tudo isso.
Após ler este texto repleto de informações, que certamente iriam se perder no decorrer do tempo, mas graças à boa memória do sr. Piffer, essa passagem outrora está preservada com este artigo. Agradeço profundamente a esse amigo pela cooperação. Fica aqui, também, meu muito obrigado ao professor Andrea Ciacchi, por ter levantado este assunto.
Pequeno navio de passageiros, Anna, da Cia. Carl Hoepcke,
escalava São Sebastião junto com seu gêmeo Carl Hoepcke.
Pintura de Antonio Giacomelli.