Domingo, 29 Dezembro 2024

Tem certas pessoas que deixam os que estão ao seu redor com alto astral, por sua alegria contagiante. Assim era Hélio Schiavon, jornalista de A Tribuna de Santos, falecido no último dia oito de fevereiro. Hélio permaneceu na seção Porto & Mar por muitos anos, em que teve a oportunidade de acompanhar de perto tudo sobre o Porto de Santos, o maior da América Latina. Em outras palavras, ele tinha a cara do Porto de Santos.

 

O jornalista Hélio Schiavon, de azul, ladeado

por amigos, dentre eles Valdemar Capela,

Armando Akio e o autor. Foto clicada no

Complexo Cultural do Porto de Santos

quando da entrega de um painel com fotos

do Porto de Santos em várias décadas. - 1999.

Foto: L. J. Giraud

 

Conheci Hélio Schiavon por volta de 1978, quando fui a A Tribuna levar uma informação da exportação de um cliente que estávamos fazendo para a Oceania. Por ele fui muito bem recebido. Já no dia seguinte, a notícia esteve estampada no famoso Porto & Mar de A Tribuna.

 

Posteriormente, levei um artigo sobre navios, que foi publicado e teve uma boa repercussão por parte dos leitores. Hélio abriu assim as portas para as matérias sobre os transatlânticos que marcaram época no porto santista e que foram publicadas por vários anos no caderno Porto & Mar. Graças a essas publicações, consegui escrever e participar de cerca de seis livros temáticos que vão do Porto, passando pelos navios, pela Cidade e pela hotelaria da Santos antiga.

 

Grande número de carroças e carretões transportando sacas de café para ser embarcadas em navios com destino aos portos norte-americanos ou europeus,

em 1908. Acervo: Maria Cecília França Monteiro da Silva – Cartão-postal

exibido numa exposição coordenada pelo autor e José Carlos Silvares, realizada

no Complexo Cultural do Porto de Santos em 1999 “A Cidade e os Navios que

Marcaram Época”.

 

A última vez que me encontrei com o Hélio foi na Praça Mauá, mais precisamente no interior do conhecido Café Carioca. Ele estava na companhia de jovens jornalistas, tudo dentro da maior alegria mencionada. Quem o conheceu sabe do que estou dizendo.

 

Para mostrar a minha gratidão a esse amigo que passou para uma dimensão superior, repriso um artigo publicado no dia 10 de julho de 1996, sobre a contribuição das carroças no desenvolvimento da nossa Cidade. Esse artigo, de sua autoria, surgiu de uma entrevista dada ao Porto & Mar, cujo texto segue na íntegra:

 

Carroças foram vitais para transportar sacos

 

Embarques no cais dependiam da safra

 

Quando evocamos o porto, logo nos lembramos do café e do duro trabalho dos estivadores. Mas poucos evocam os condutores de carroças e carretões, tão importantes, no início do século, para o transporte de sacarias da gare (estação) do trem para o cais.

 

Carroças agregadas do ouro verde, passando pela casa de força da

Cia. Docas de Santos, vendo-se também grande número de imigrantes

no aguardo do transporte para a Hospedaria dos Imigrantes – 1908.

Acervo: L. J. Giraud

 

Para o pesquisador e despachante aduaneiro Laire José Giraud, de Santos, eles foram figuras fundamentais para o desenvolvimento econômico, social e sindical da Cidade. A vida era dura. Nas cocheiras, o trabalho começava na madrugada fria, muitas horas antes de o sol acordar o porto.

 

O poeta e estadista Ribeiro Couto foi buscar no fundo nostálgico e sua infância as lembranças do trabalho matutino:

 

“Nasci junto ao porto, ouvindo o barulho dos embarques. Os pesados carretões de café sacudiam as ruas, faziam trepidar meu berço”.

 

Raríssima fotografia do acervo de Jaime Caldas,

falecido recentemente, mostrando a Casa da

Frontaria Azulejada, onde estão carroças aguar-

dando carregamento de sacas de café. (1905,

aproximadamente).

 

Com efeito, as sacas de café, ao chegarem a Santos eram descarregadas dos vagões e colocadas nos depósitos alinhados à ferrovia.

 

Então, as carroças e os carretões estacionavam junto às portas numeradas dos depósitos, para carregarem o café destinado ao cais.

 

Entre sacos e rodas

Havia firmas organizadas, mas muitos carroceiros e carreteiros eram autônomos, conta Maria Izilda Matos no livro Santos, Café & História, de 1995, da Editora Leopoldianum, da UniSantos.

 

Segundo a autora, desde o fim do século passado, o trabalho girava em torno da safra. E o número desses profissionais foi crescendo à medida que aumentava o volume de café exportado.

 

A Cidade de Santos tinha esse aspecto em 1900. Na foto, só existia

o cais que ia do Valongo até o Paquetá. Notem que, no canto

 superior, ainda não existia o cais de pedra que ia do Paquetá aos

Outeirinhos, que só foi concluído em 1904. Nessa época Santos se

movimentava através das carroças. Foto Acervo: Jaime Caldas

 

Pelas ruas estreitas da Cidade, os homens corriam ao lado das carroças puxadas a burro, sob um calor sufocante, fazendo às pressas a viragem, as misturas e o reensaque de café. O trânsito de centenas de carroças e carretões disputava com as epidemias o espaço urbano.

 

É que ainda havia muitas cocheiras-cortiços, onde os animais dividiam com homens, mulheres e crianças o espaço das habitações coletivas, construídas sobre palanques nas baías, revela a autora.

 

Vida dura

Já a historiadora Maria Lúcia Gitahi, em Ventos do Mar, revela que os anos de 1911 a 1913 foram especialmente marcantes para a categoria.

 

Prédio que abrigava a antiga exportadora de

café Mc Laughlin Co. e, embaixo, possuía

armazéns de sacas de café. Na foto, são

vistas carroças, como provou que muito

ajudou no desenvolvimento de Santos. – 1910.

Acervo: L. J. Giraud

 

Os carroceiros, empregados das firmas exportadoras ou de empresas organizadas que trabalhavam para as exportadoras, entraram em greve, reivindicando jornada de dez horas de trabalho.

 

Normalmente, entravam às 4 horas e só saíam às 20, ficando 16 horas à disposição dos patrões.

 

“A escravatura negra já terminou, mas agora existe outra, a branca”, argumentava um carroceiro, para um jornal da época.

 

Cartão-postal de 1919 mostra a estação de trens do Valongo

(São Paulo Railway), onde o café chegava do interior e, após

descarregar, seguia para os armazéns gerais ou para embarque

direto nos navios atracados no Porto de Santos. Acervo: L. J. Giraud

 

“Chegamos às cocheiras às 3h30 e, depois de limpar os arreios, vamos para a rua. Começamos a carregar às 5 horas, porque às 6 a Docas começa a funcionar. Só largamos às 8 ou às 10 da noite”, revelava, defendendo a greve que acabou vitoriosa, com o apoio dos estivadores, carregadores de docas e de militantes anarco-sindicalistas.

 

Intermodal

O pesquisador Laire José Giraud chama a atenção para o importante trabalho de transporte, entre trem e o navio, que foi executado por mais de meio século pelos carroceiros.

 

Eram tantas as carroças e os carretões, que na safra congestionavam as vias próximas do cais.

 

Trepidando sobre o macadame (calçamento de pedra britada), aqueles veículos puxados a burro circularam livremente pelas estreitas vias de Santos até meados da década de 30, quando começaram a ser substituídos elo transporte mecânico, os caminhões.

 

Na foto do acervo de Jaime Caldas, aparece o local onde estava

situada a Confeitaria do Povo, A Cascata e outros estabelecimentos

cujos prédios foram demolidos para dar lugar ao Largo do Rosário,

atual Praça Rui Barbosa. Nela, vemos duas carroças carregadas de

café e bondes puxados a burro. A rua que vemos à direita, é onde

fica a atual Avenida João Pessoa, ex-Rua do Rosário 

(por volta de 1905).

 

O seu lugar foi tomado pelos pesados veículos, que, guardadas as proporções devidas, enfrentam hoje problemas iguais.

 

Enfim, a memória é sempre viva e atual, mas a História, segundo Pierre Nova, é problemática e incompleta, porque se trata de reconstruir aquilo que não é mais.

 

O descarregamento das sacas de café

mobilizava um grande número de trabalha-

dores. Alguns chegavam a suportar o peso

de até cino sacas de café de 60 quilos,

como vemos o famoso carregador Jacintho

que ficou conhecido para sempre no Porto

de Santos. – 1905. Foto exibida na exposição

“A Cidade e os Navios que Marcaram Época”, 

em 1999.

 

Quem sabe as nossas autoridades portuárias dêem o nome de Hélio Schiavon a um dos lugares mais genuínos da Cidade de Santos, o Porto de Santos?

 

O cartão-postal do início do século XX mostra o verdadeiro

formigueiro de estivadores levando as sacas de café das carroças

para os porões dos navios. O local é nas proximidades do prédio da

Alfândega do Porto de Santos. Acervo: L. J. Giraud

Curta, comente e compartilhe!
Pin It
0
0
0
s2sdefault
powered by social2s

topo oms2

Deixe sua opinião! Comente!