Tem certas pessoas que deixam os que estão ao seu redor com alto astral, por sua alegria contagiante. Assim era Hélio Schiavon, jornalista de A Tribuna de Santos, falecido no último dia oito de fevereiro. Hélio permaneceu na seção Porto & Mar por muitos anos, em que teve a oportunidade de acompanhar de perto tudo sobre o Porto de Santos, o maior da América Latina. Em outras palavras, ele tinha a cara do Porto de Santos.
O jornalista Hélio Schiavon, de azul, ladeado
por amigos, dentre eles Valdemar Capela,
Armando Akio e o autor. Foto clicada no
Complexo Cultural do Porto de Santos
quando da entrega de um painel com fotos
do Porto de Santos em várias décadas. - 1999.
Foto: L. J. Giraud
Conheci Hélio Schiavon por volta de 1978, quando fui a A Tribuna levar uma informação da exportação de um cliente que estávamos fazendo para a Oceania. Por ele fui muito bem recebido. Já no dia seguinte, a notícia esteve estampada no famoso Porto & Mar de A Tribuna.
Posteriormente, levei um artigo sobre navios, que foi publicado e teve uma boa repercussão por parte dos leitores. Hélio abriu assim as portas para as matérias sobre os transatlânticos que marcaram época no porto santista e que foram publicadas por vários anos no caderno Porto & Mar. Graças a essas publicações, consegui escrever e participar de cerca de seis livros temáticos que vão do Porto, passando pelos navios, pela Cidade e pela hotelaria da Santos antiga.
Grande número de carroças e carretões transportando sacas de café para ser embarcadas em navios com destino aos portos norte-americanos ou europeus,
em 1908. Acervo: Maria Cecília França Monteiro da Silva – Cartão-postal
exibido numa exposição coordenada pelo autor e José Carlos Silvares, realizada
no Complexo Cultural do Porto de Santos em 1999 “A Cidade e os Navios que
Marcaram Época”.
A última vez que me encontrei com o Hélio foi na Praça Mauá, mais precisamente no interior do conhecido Café Carioca. Ele estava na companhia de jovens jornalistas, tudo dentro da maior alegria mencionada. Quem o conheceu sabe do que estou dizendo.
Para mostrar a minha gratidão a esse amigo que passou para uma dimensão superior, repriso um artigo publicado no dia 10 de julho de 1996, sobre a contribuição das carroças no desenvolvimento da nossa Cidade. Esse artigo, de sua autoria, surgiu de uma entrevista dada ao Porto & Mar, cujo texto segue na íntegra:
Carroças foram vitais para transportar sacos
Embarques no cais dependiam da safra
Quando evocamos o porto, logo nos lembramos do café e do duro trabalho dos estivadores. Mas poucos evocam os condutores de carroças e carretões, tão importantes, no início do século, para o transporte de sacarias da gare (estação) do trem para o cais.
Carroças agregadas do ouro verde, passando pela casa de força da
Cia. Docas de Santos, vendo-se também grande número de imigrantes
no aguardo do transporte para a Hospedaria dos Imigrantes – 1908.
Acervo: L. J. Giraud
Para o pesquisador e despachante aduaneiro Laire José Giraud, de Santos, eles foram figuras fundamentais para o desenvolvimento econômico, social e sindical da Cidade. A vida era dura. Nas cocheiras, o trabalho começava na madrugada fria, muitas horas antes de o sol acordar o porto.
O poeta e estadista Ribeiro Couto foi buscar no fundo nostálgico e sua infância as lembranças do trabalho matutino:
“Nasci junto ao porto, ouvindo o barulho dos embarques. Os pesados carretões de café sacudiam as ruas, faziam trepidar meu berço”.
Raríssima fotografia do acervo de Jaime Caldas,
falecido recentemente, mostrando a Casa da
Frontaria Azulejada, onde estão carroças aguar-
dando carregamento de sacas de café. (1905,
aproximadamente).
Com efeito, as sacas de café, ao chegarem a Santos eram descarregadas dos vagões e colocadas nos depósitos alinhados à ferrovia.
Então, as carroças e os carretões estacionavam junto às portas numeradas dos depósitos, para carregarem o café destinado ao cais.
Entre sacos e rodas
Havia firmas organizadas, mas muitos carroceiros e carreteiros eram autônomos, conta Maria Izilda Matos no livro Santos, Café & História, de 1995, da Editora Leopoldianum, da UniSantos.
Segundo a autora, desde o fim do século passado, o trabalho girava em torno da safra. E o número desses profissionais foi crescendo à medida que aumentava o volume de café exportado.
A Cidade de Santos tinha esse aspecto em 1900. Na foto, só existia
o cais que ia do Valongo até o Paquetá. Notem que, no canto
superior, ainda não existia o cais de pedra que ia do Paquetá aos
Outeirinhos, que só foi concluído em 1904. Nessa época Santos se
movimentava através das carroças. Foto Acervo: Jaime Caldas
Pelas ruas estreitas da Cidade, os homens corriam ao lado das carroças puxadas a burro, sob um calor sufocante, fazendo às pressas a viragem, as misturas e o reensaque de café. O trânsito de centenas de carroças e carretões disputava com as epidemias o espaço urbano.
É que ainda havia muitas cocheiras-cortiços, onde os animais dividiam com homens, mulheres e crianças o espaço das habitações coletivas, construídas sobre palanques nas baías, revela a autora.
Vida dura
Já a historiadora Maria Lúcia Gitahi, em Ventos do Mar, revela que os anos de 1911 a 1913 foram especialmente marcantes para a categoria.
Prédio que abrigava a antiga exportadora de
café Mc Laughlin Co. e, embaixo, possuía
armazéns de sacas de café. Na foto, são
vistas carroças, como provou que muito
ajudou no desenvolvimento de Santos. – 1910.
Acervo: L. J. Giraud
Os carroceiros, empregados das firmas exportadoras ou de empresas organizadas que trabalhavam para as exportadoras, entraram em greve, reivindicando jornada de dez horas de trabalho.
Normalmente, entravam às 4 horas e só saíam às 20, ficando 16 horas à disposição dos patrões.
“A escravatura negra já terminou, mas agora existe outra, a branca”, argumentava um carroceiro, para um jornal da época.
Cartão-postal de 1919 mostra a estação de trens do Valongo
(São Paulo Railway), onde o café chegava do interior e, após
descarregar, seguia para os armazéns gerais ou para embarque
direto nos navios atracados no Porto de Santos. Acervo: L. J. Giraud
“Chegamos às cocheiras às 3h30 e, depois de limpar os arreios, vamos para a rua. Começamos a carregar às 5 horas, porque às 6 a Docas começa a funcionar. Só largamos às 8 ou às 10 da noite”, revelava, defendendo a greve que acabou vitoriosa, com o apoio dos estivadores, carregadores de docas e de militantes anarco-sindicalistas.
Intermodal
O pesquisador Laire José Giraud chama a atenção para o importante trabalho de transporte, entre trem e o navio, que foi executado por mais de meio século pelos carroceiros.
Eram tantas as carroças e os carretões, que na safra congestionavam as vias próximas do cais.
Trepidando sobre o macadame (calçamento de pedra britada), aqueles veículos puxados a burro circularam livremente pelas estreitas vias de Santos até meados da década de 30, quando começaram a ser substituídos elo transporte mecânico, os caminhões.
Na foto do acervo de Jaime Caldas, aparece o local onde estava
situada a Confeitaria do Povo, A Cascata e outros estabelecimentos
cujos prédios foram demolidos para dar lugar ao Largo do Rosário,
atual Praça Rui Barbosa. Nela, vemos duas carroças carregadas de
café e bondes puxados a burro. A rua que vemos à direita, é onde
fica a atual Avenida João Pessoa, ex-Rua do Rosário
(por volta de 1905).
O seu lugar foi tomado pelos pesados veículos, que, guardadas as proporções devidas, enfrentam hoje problemas iguais.
Enfim, a memória é sempre viva e atual, mas a História, segundo Pierre Nova, é problemática e incompleta, porque se trata de reconstruir aquilo que não é mais.
O descarregamento das sacas de café
mobilizava um grande número de trabalha-
dores. Alguns chegavam a suportar o peso
de até cino sacas de café de 60 quilos,
como vemos o famoso carregador Jacintho
que ficou conhecido para sempre no Porto
de Santos. – 1905. Foto exibida na exposição
“A Cidade e os Navios que Marcaram Época”,
em 1999.
Quem sabe as nossas autoridades portuárias dêem o nome de Hélio Schiavon a um dos lugares mais genuínos da Cidade de Santos, o Porto de Santos?
O cartão-postal do início do século XX mostra o verdadeiro
formigueiro de estivadores levando as sacas de café das carroças
para os porões dos navios. O local é nas proximidades do prédio da
Alfândega do Porto de Santos. Acervo: L. J. Giraud