Foi com grande tristeza que recebi a notícia do falecimento do pesquisador e historiador Jaime Caldas, no último 31 de janeiro. O “seu Jaime”, como eu o chamava, foi uma pessoa muito importante na história de Santos e de São Vicente, pois sabia tudo sobre elas, além de possuir um rico acervo de fotos antigas dessas cidades.
Jaime Caldas colaborou com muitos jornais como A Tribuna de Santos, jornal Primeira Cidade, Cellula Mater, Informativo do Instituto Histórico e Geográfico de São Vicente e era um exímio violonista. Ninguém tocava um choro como ele.
Como é do conhecimento de alguns, Jaime Caldas foi meu parceiro em dois livros além de escrevermos alguns artigos interessantes como os Trapiches do Porto de Santos.
Na foto, o historiador Jaime Caldas, ladeado pelo
jornalista José Carlos Silvares e o autor, durante exposição
de cartões-postais do acervo de Silvares, no Miramar
Shopping. – 2003. Foto: Marcelo Talamo
Muito poderia ser dito sobre esse amigo que me deu o prazer de algumas vezes almoçarmos e lancharmos no tradicional Café Paulista no Centro Histórico de Santos, onde também estava sempre presente, na mesa, o poeta Narciso de Andrade, falecido em dezembro de 2007.
Como uma homenagem póstuma a esse grande pesquisador, esta coluna transcreve um artigo publicado a exatamente dois anos, como segue:
Jaime Caldas - um grande cidadão de Santos e São Vicente
“A pesquisa histórica é, para mim, um hobby como qualquer outro”.
Jaime Caldas
|
Conheci Jaime Caldas pessoalmente por volta de 1994, quando tive a oportunidade de ver antigas fotografias de vários autores do começo do Século 20. Daí surgiu um grande relacionamento que nos levou a publicar dois livros, a saber: ‘Photografias & Fotografias do Porto de Santos’, juntamente com José Carlos Rossini e Nelson Antonio Carrera, em 1996. A seguir, participamos de um outro livro, também pictórico, que recebeu o título de ‘Santos – Cidade Marítima’, lançado em 1999.
Além desses livros, escrevemos em parceria, para o jornal A Tribuna, um artigo que, na minha opinião, foi um dos melhores de que já participei. Trata-se de ‘Os trapiches de Santos’, que também saiu no Mirante Mundi em 2004.
Sempre que me surgiam dúvidas sobre o passado de Santos, eu recorria ao ‘seu’ Jaime, como carinhosamente o chamo.
Nós nos reuníamos no Café Paulista, onde almoçávamos, ou nos encontrávamos no fim da tarde para um lanche, para o qual sempre tínhamos a companhia do poeta Narciso de Andrade, de Dario Gonçalves, do advogado Benê Siqueira e do amigo Valdir dos Santos, falecido recentemente. E assim as dúvidas eram dizimadas e as informações já eram compiladas para um novo livro.
O pesquisador Jaime Caldas nas instalações
do jornal Primeira Cidade, de São Vicente,
município que é a ’’cellula matter’’ - célula-mãe -
do Brasil. (Reprodução)
Um detalhe: Jaime Caldas sempre teve ciúmes das fotografias que faziam parte do seu acervo. Dificilmente as emprestava a quem quer que seja, mas para mim esse problema não existia. Tudo que pedia era só passar na casa dele, apanhar, escanear e por fim devolver o material.
Uma importante contribuição de Jaime Caldas foi a mudança no desenho do emblema da Cidade de Santos, que ele sempre apontou erros. Não vou apontá-los, mas deixo bem claro que as mudanças no novo emblema ocorreram graças à sua profunda pesquisa.
Muitos foram convidados para formarem uma comissão de estudiosos, que, em outras palavras, também queriam colaborar na correção do Brasão da Cidade. Felizmente o engano foi corrigido graças ao grande Jaime Caldas.
Falar sobre Jaime Caldas é muito fácil e bastante difícil ao mesmo tempo. Fácil pelas coisas que fez em prol da memória de Santos e de São Vicente. Difícil por serem tantas as colaborações em várias obras que fica aqui difícil mencioná-las em tão curto espaço.
Como uma singela homenagem ao grande amigo, reproduzo matéria do jornal Primeira Cidade, de 14 de fevereiro de 1994: Jaime Caldas foi entrevistado. Eis o texto da entrevista:
Um homem que tem história
Você sabe a história de seu bairro, ou quem foi a pessoa que hoje empresta o nome à sua rua? Não? Pois pergunte a Jaime Mesquita Caldas. Ele provavelmente não só lhe dirá tudo isso, como é bem capaz de sacar de seu bem organizado arquivo uma fotografia do local há 50, 60, talvez 100 anos.
Jaime Caldas. (Reprodução)
Dono de um acervo de centenas de documentos antigos e mais de mil fotografias históricas, entre Santos e São Vicente, este tenente reformado da Polícia Militar – à qual se incorporou depois da extinção da Polícia Marítima – é hoje um dos mais respeitados pesquisadores históricos do Estado.
Longe de aparentar seus 79 anos, este santista de nascimento, vicentino de coração, é um homem à parte. Já foi desde membro do famoso Conjunto Calunga, com seu violão-tenor, a assessor de três prefeitos (Jorge Bierrenbach Senra, Koyu Iha e Antônio Fernando dos Reis).
Visitou o Japão – país pelo qual tem verdadeira paixão – e hoje se dedica ao hobby que já se tornou uma razão de vida, a pesquisa histórica. Saiba um pouco mais sobre o titular da coluna São Vicente de Outrora, um homem que, literalmente, tem muita história para contar.
Primeira Cidade – Como começou seu interesse pela História?
Jaime – Eu sempre gostei. Mas meu trabalho de pesquisa histórica começou mesmo em 1963. Queria saber um pouco mais sobre minha rua e fui à casa do falecido Costa e Silva Sobrinho [José da Costa e Silva Sobrinho, historiador]. Fui eu e o Edson Telles [de Azevedo, também pesquisador].
Primeira Cidade – Como foi?
Jaime – Me lembro até que levamos umas cocadinhas feitas em casa. Marcamos um domingo e fomos. O Costa e Silva tinha o arquivo dele fora da casa, numa garagem, que ele chamava de “tenda de trabalho”. Ali ele tinha perto de 200 volumes, feitos por ele, com o arquivo completo da história de Santos. Coisa fantástica. Ele já não enxergava mais e não tinha um braço. Naquela tarde, que eu considero memorável, ele nos ofereceu o livro que tinha publicado, Santos Noutros Tempos. Me lembro bem que a senhora dele datilografou a dedicatória, ditada por ele, pois não podia mais escrever, e depois guiou a mão dele, a esquerda, para assinar. Isso tem um valor extraordinário para mim.
Jaime Caldas. (Reprodução)
Primeira Cidade – E depois?
Jaime – Aí eu comecei a engatinhar nisso, criei coragem e escrevi sobre o maestro e compositor vicentino Eduardo Souto. Leram para ele o artigo e ele me mandou uma carta, me incentivando bastante e dando os parabéns pelo que eu havia escrito. Essa carta eu guardo com muito carinho, pois um historiador do gabarito dele me mandar uma carta daquela, eu era uma formiguinha pequena perto dele.
Primeira Cidade – Sendo de Santos, por que o interesse por São Vicente?
Jaime – Freqüento São Vicente desde os 7 anos de idade. Aqui eu fiz as maiores amizades, foi aqui que eu aprendi a tocar violão, que fiz minhas serenatas. Qualquer folguinha que eu tinha, vinha para cá. Então, eu sou praticamente mais conhecido aqui do que em Santos.
Primeira Cidade – O senhor se recusa a ser chamado de historiador. Por quê?
Jaime – Porque eu não sou formado em História! Não tenho curso de História, nem formação acadêmica. A pesquisa histórica, para mim, é um hobby, como outro qualquer. Eu gosto disso.
Primeira Cidade – Mas é um hobby que o senhor leva muito a sério, não?
Jaime – Ah, levo. E sabe por quê? Meu maior prazer é descobrir o resultado das distorções históricas. Cada historiador escreve uma coisa, e nós temos que chegar a uma conclusão. É aí que entra a pesquisa porque, no campo intelectual, é pela divergência que se caminha para a verdade. Fulano de tal conta um caso, outro conta outro e tal... Você vai pesquisar para saber realmente se assemelha mais perante a História.
Primeira Cidade – Poderia dar um exemplo?
Jaime – Li um artigo do Carlos de Andrade que foi o resultado de uma conversa que ele teve com o vereador Ricardo Veron. Para ele, a Avenida Presidente Wilson não diz nada e deveria se chamar Bacharel Cosme Fernandes. Então eu pergunto: o nome dele todo é Cosme Fernandes Pessoa. Qual é o documento que ele teria em mãos para saber que realmente ele foi o bacharel da história de São Vicente? Para alguns historiadores, era Francisco Chaves. Para Washington Luís, nunca foi identificado. Por isso, é preciso muita cautela para se dar o nome a essa avenida. Sabemos, através da História, que veio para cá um homem formado em letras e muito inteligente, mas ninguém sabe com certeza quem era ele.
Imagem - datada de cerca de 1881 - utilizada para
ilustrar o artigo ’’Os trapiches de Santos’’, mostrando os
antigos atracadouros de madeira.
(Reprodução: Acervo L. J. Giraud)
Primeira Cidade - Onde o senhor aprendeu tanto sobre a história de São Vicente?
Jaime - Eu convivi e tive contato com muitos historiadores, como Edson Telles de Azevedo, Chico Martins, Jaime Franco, Costa e Silva Sobrinho... Eles me chamavam de velho moço, pois eu era jovem na época. Mesmo em São Paulo, eu era freqüentador da Livraria Olintho Moura, onde se reuniam os intelectuais da Capital, todos eles profundos conhecedores da História. E eu me encontrava com eles.
Primeira Cidade - Quais suas principais fontes de pesquisa?
Jaime - Olha, eu já pesquisei no Museu Paulista, Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Arquivo do Estado, arquivos paroquiais, principalmente em São Paulo. A Cúria Metropolitana tem muita coisa, o Arquivo do Estado também. O primeiro recenseamento de São Vicente, de 1765, está lá. Além disso, eu freqüentava a casa desses historiadores, que tinham muita coisa em seu arquivo particular, eu tirava cópias... Mas a maior preciosidade são os arquivos paroquiais.
Primeira Cidade – Por quê?
Jaime – Porque não havia cartório naquele tempo, e tudo se registrava na Igreja. Nascimentos, casamentos, óbitos, testamentos, vendas de terras, tudo era na Igreja. Às vezes deixo algumas pessoas curiosas quando pergunto: “Os cemitérios foram criados em 1850, por um aviso régio proibindo os sepultamentos nas igrejas. E essa gente toda, que morreu antes da criação dos cemitérios públicos, foram enterradas onde?”. Nas igrejas, capelas, templos. E eu tenho esse livro de inumações, que copiei do arquivo do Costa e Silva. Traz todo o pessoal que foi sepultado nas igrejas, inclusive na Matriz de São Vicente.
Primeira Cidade – Deve trazer dados muito interessantes...
Jaime – Eu estava na Prefeitura e fui procurado por um cidadão da família Carvalho Franco, de São Paulo, que era bisneto de um ascendente que veio para São Vicente para cuidar do pulmão, mas acabou morrendo aqui. Ele não encontrou na Cúria Diocesana de Santos a nota de falecimento do parente dele, e queria algum documento sobre isso, pois era um grande genealogista e historiador. Queria saber a data do falecimento e tal. E foi através do livro de inumações que eu tenho que ele conseguiu, pois o corpo foi sepultado aqui, na Matriz de São Vicente.
Primeira Cidade – Qual o maior inimigo da pesquisa histórica?
Jaime – O que eu tenho escutado de estudantes que me procuram é: “Fui a tal lugar e não me deixam consultar o livro, fui a tal lugar e está fechado, ou então encontro má vontade do funcionário, ou ele não tem conhecimento daquilo que eu pergunto e já vai me dizendo que não há nada sobre esse assunto”. Esse é o maior inimigo da pesquisa histórica: a má vontade [risos].
Primeira Cidade - Qual a recompensa que a pesquisa história lhe traz?
Jaime – A satisfação de conhecer a História e fazer o que gosto. Não existe maior recompensa.
Jaime Caldas, você já está no Céu ao lado do jornalista Olao Rodrigues, do professor Nelson Salasar Marques e do poeta Narciso de Andrade, que juntos conseguiram reunir muitas coisas da nossa história. Obrigado pelo rico legado que deixou para nós que habitamos a Baixada Santista.