Como disse em certa ocasião num de meus artigos, durante alguns anos da Década de 90, costumava, no final da tarde, dirigir-me para o conhecido Café Paulista, que fica no início da Rua do Comércio, no Centro Histórico de Santos.
Cartão-postal - em pintura de Stephen J. Card - do Andrea C, navio
adquirido de segunda mão em 1948 pela armadora Linea C. Navegou
durante muitos anos na linha da América do Sul. Em 1969, começou a
realizar cruzeiros na costa brasileira, fazendo o batismo da companhia
no Brasil. (Reprodução: Acervo de L. J. Giraud)
Nesse famoso local da Cidade, costumava sentar-me na companhia de pessoas que apreciavam as coisas de Santos, como o poeta Narciso de Andrade, Waldemar Capella, Waldir dos Santos, Benê Siqueira, Jaime Caldas, Dario Gonçalves, entre muitos que apareciam esporadicamente, mas que apreciavam as coisas de Santos.
As conversas variavam muito, pois os assuntos - com um pouco de exagero - pendiam para o infinito.
Assim conversávamos - até onde a nossa memória alcançasse - sobre assuntos como cinemas do passado, bares e restaurantes, cinemas, lojas, clubes, firmas exportadoras de café que não mais existiam, colégios, antigas namoradas e outros.
O transatlântico português Vera Cruz, de 1952, na pintura clássica
de Gordon Ellis, que foi muito popular entre os brasileiros e portugueses
(Reprodução: Acervo de L. J. Giraud)
Em uma dessas tardes, o assunto foi sobre navios de passageiros do passado, e cada um dos participantes contava alguma coisa sobre os seus transatlânticos preferidos.
Depois de certo tempo, mais precisamente, em 26 de maio de 1995, uma 6.ª-feira, ao abrir o jornal A Tribuna, de Santos, deparei com um dos inspirados escritos de Narciso de Andrade, que versava sobre o assunto. Eis o texto que usei no livro Transatlânticos em Santos 1901-2001, por achá-lo muito especial, principalmente para os que apreciam as coisas pertencentes aos transatlânticos do passado:
No tempo dos transatlânticos
* por Narciso de Andrade
Nunca viajei de navio, mas mantive certa intimidade com eles – os navios – quando fui repórter marítimo. Isso lá pelos fins dos Anos 40, início dos 50, no velho O Diário, de Santos, da cadeia dos Associados de Assis Chateaubriand.
Já contei um pouco dessa história, principalmente para lembrar a figura do jornalista Francisco de Azevedo, criador da seção Vida Marítima que ele trouxe para A Tribuna quando aqui veio trabalhar a convite de Nascimento Júnior, criando então Porto & Mar, até hoje nas páginas deste jornal.
Aquarela de Julio A. R. Paes, do transatlântico italiano Giulio
Cesare, de 1951, da armadora Italia di Navigazione (Reprodução)
Azevedo foi um dos maiores apaixonados que conheci das coisas do mar, notadamente dos navios. Para mim, há muito tempo se findaram os tempos de reportagem, os saudosos e vibrantes tempos de repórter.
Eis que, da mesa que costumo ocupar para meu lanche vespertino no Café Paulista, se aproxima um cavalheiro simpático, despachante aduaneiro, superapaixonado, para usar de terminologia corrente, pelos navios, conhecendo a História, em detalhes, dos maiores e mais famosos transatlânticos.
E mais: possui belíssima coleção de postais e fotografias dos principais navios, que, na linguagem de outros tempos, cruzaram os mares.
Imagem do transatlântico espanhol Cabo San Roque, da
Ybarra y Cia. S.A., de Sevilha (Reprodução: Acervo de L. J. Giraud)
E eis-me aqui a falar de navios por obra e graça de Laire José Giraud, de quem recebi as generosas informações que possibilitaram a elaboração desta crônica.
Então, fico sabendo que o transatlântico italiano Conte Grande aqui veio antes e depois da guerra, tendo ficado retido, foi depois para os Estados Unidos e serviu como transporte de guerra com o nome de Montecielo.
Em 3 de agosto de 1949, ainda mais belo em sua nova cor branca, retornou a Santos, e sua chegada foi triunfal.
Só desse magnífico transatlântico muita coisa poderia ser contada, mas, entre os italianos, havia ainda o Conte Biancamano, o Anna C, que vieram antes da guerra e retornaram em 49 e 48, respectivamente. Eram igualmente lindos e grandiosos.
Os transatlânticos britânicos da Royal Mail Lines foram muito
conhecidos na linha da América do Sul, entre eles o Andes - 1939
(Reprodução: Acervo de L. J. Giraud)
A Inglaterra sempre foi considerada a rainha dos mares; de nacionalidade britânica, aqui aportaram o Alcantara, o Andes, , os Highland Brigade, Princesa, Chieftain e Patriot. Este último, após passar por Santos, foi torpedeado no Atlântico.
Depois da guerra, aqui estiveram os navios novos, mantendo a alta tradição inglesa, Brasil, Argentina e Uruguai.
Em março de 49, aquele que seria o mais moderno transatlântico até então construído, o Magdalena, que bateria em uma laje na Barra da Tijuca, indo ao fundo.
Ilustração de um dos três transatlânticos Del Mar, Del Sud e
Del Norte, de bandeira dos Estados Unidos, da armadora Delta
Line de Nova Orleans. Eles foram muito conhecidos no final dos
Anos 40 até inicio dos Anos 60 (Reprodução: Acervo de L. J. Giraud)
Nas minhas funções de repórter, na época, tive oportunidade de visitar este transatlântico realmente magnífico. Ironia das ironias, era considerado insubmersível.
Antes da guerra, freqüentaram o Porto de Santos vários navios alemães, tais como o Monte Sarmiento, Monte Olivia, os Cap, entre eles o inolvidável Cap Arcona.
Cada um tinha a sua história porque os navios têm personalidade própria, não se confundem uns com os outros como os demais veículos de transporte coletivo.
O transatlântico Itanagé, da Companhia Nacional de Navegação
Costeira, de 1928, ligava o Brasil de Norte a Sul, em pintura de
Antonio Giacomelli (Reprodução: Acervo de L. J. Giraud)
Construídos após a guerra, os americanos Del Norte, Del Sud, Delmar, todos do ano de 1946, sucedendo os famosos Argentina e Brasil, considerados como heróis de guerra.
Além desses, lembramos o francês Florida, o Pasteur, além dos portugueses Serpa Pinto, Pátria, Império, Vera Cruz e Santa Maria.
Como Portugal manteve a neutralidade, eles aqui estiveram antes, durante e depois da guerra. Eram de formas belas e delicadas, e faziam muito sucesso, notadamente junto à colônia portuguesa.
Muito visitados eram também os brasileiros da Costeira e do Lloyd: D.Pedro II, os Ita, Almirante Jaceguai, e vários outros empregados na navegação de cabotagem.
Não quero tornar esta matéria por demais fantasiosa e encerro-a por aqui, na certeza de que os interessados no assunto saberão completá-la e preencher as lacunas.
Peço vênia a Nelson Salazar Marques para transcrever trecho de um de seus trabalhos publicados por este jornal:
"... Mas foi ao Bonde 4 que devia eu uma visão que mais de 30 anos não conseguiram apagar. Eu ia a bordo do bonde, costeando a orla da praia em direção ao Clube Internacional de Regatas... – qual brisa marinha nos chapando o rosto, devia ser ali por 1955 mais ou menos..."
"Então, na altura do Aquário Municipal, de relance, meus olhos pegam aquele transatlântico imenso em seu casco negro, rompendo firme as águas em direção contrária à do bonde. Lá estava ele de volta, majestoso e invencível, renascendo das cinzas da Segunda Guerra Mundial... Lá estava ele, o Alcantara”.