Sábado, 28 Dezembro 2024

Braz Cubas, o fundador de Santos (1545), tão logo chegou à Capitania de São Vicente, acompanhando a expedição de Martim Afonso de Souza, entusiasmou-se com amplo estuário, perfeito para o fundeio de embarcações. Com isso, podemos notar que o local já era um ancoradouro ou fundeadouro natural desde aquela remota época.


O cartão-postal dos anos 30, mostra que a parte do estuário do Porto

de Santos próximo ao Centro era um grande fundeadouro, onde os

navios aguardavam atracação ou sofriam reparos. Acervo: L. J. Giraud

 

Muitos historiadores deram como sendo Lagamar do Enguaguaçú (ou Enguaguassú), a pequena bacia existente em frente à atual Alfândega do Porto de Santos, junto à foz do Rio da Bertioga e nas proximidades, onde foi fundado o povoado inicialmente chamado de Enguaguaçú, por se achar nas proximidades desse local, passando depois a Porto São Vicente, Vila do Porto de Santos, e finalmente, apenas Santos.

 

Com relação  ao fundeadouro, me veio a lembrança que, quando menino, meus pais costumavam ir ao Rio de Janeiro de avião, um verdadeiro desafio para a época, cujo serviço era prestado pela Companhia Real, muito conhecido nos anos 50 e 60. Os vôos saíam da base aérea de Santos, que ficava situada na Bocaina, situada na margem esquerda do canal do Porto de Santos.

 


Impressionante o local do Porto de Santos que no passado foi

conhecido como Lagamar do Enguaguaçú, ficava coalhado de navios

fundeados entre o Valongo e o Paquetá. – Início da década de 1950.

Acervo: L. J. Giraud

 

Antes do embarque aéreo, os passageiros se reuniam nas proximidades do antigo pontão das barcas do Itapema, hoje Vicente de Carvalho, de onde seguiam numa lancha da Aeronáutica que os levavam até a Base Aérea. Entretanto, o que mais me agradava nessas viagens à Cidade Maravilhosa era o percurso de 15 minutos nessa lancha, que passava próximo aos inúmeros navios fundeados (ancorados), além de passar perto da faixa do cais, onde se via os navios daqueles idos tempos, alguns até muito antigos para a época, outros tinham sido navios de desembarque de tanques na Segunda Guerra Mundial, mais conhecidos como LST, e que tiveram suas proas basculantes soldadas e transformadas em navios de cabotagem. Como exemplos o Paula e o Rio Guaramiranga, da Companhia Nacional de Navegação, que pertenceu ao armador  Modesto Roma, que presidiu o Santos Futebol Clube em tempos passados.

 

Depois, na minha adolescência, no início dos anos 60, uma das minhas distrações, além de ir à praia e ao cinema, era o de ver o movimento das lanchas levando e trazendo tripulantes de várias nacionalidades e funcionários das agências dos navios para a terra e vice-versa.

 


Navios da época utilizavam a zona de fundeio do Porto de Santos até

a sua proibição pela razão de desimpedir a passagem dos navios que se

dirigiam ao cais da Cosipa e Ultrafértil. Cartão-postal do cargueiro

Suécia, da Johnson Line, típico da época pré-container. Década de 1940.

Acervo: L. J. Giraud

 

Mais tarde, quando prestei exame para praticante de prático, precisei conhecer as particularidades do Porto de Santos, e assim vim a entender que aquele ponto era uma das zonas de fundeio do porto, conhecidas como Zona 1, Zona 2, Zona 3, e assim sucessivamente. Inclusive, na Baía de Santos, existia zona de fundeio, todas essas zonas de fundeio eram assinaladas na carta náutica nº 1701, que representa o Porto de Santos, e editada pela Diretoria de Hidrografia e Navegação, da Marinha do Brasil. Uma curiosidade: na referida carta, constava o local por onde passava o cabo submarino da empresa estadunidense, Italcable, que saía do local onde ficava a sede do Clube XV, no Canal 3, e seguia para outros países.

 

Mas a zona de fundeio que mais se destacava como até hoje, são as que ficam entre o cais do Valongo e o Paquetá, onde ancoravam a maioria dos navios. Isto permitia um grande movimento de várias lanchas, que faziam serviços semelhantes aos de táxis, levando e trazendo pessoas entre os navios e o cais. Algumas dessa época sobreviveram, como várias que ainda vemos navegando pelo nosso estuário, algumas com aproximadamente 70 anos de existência. Os que trabalham no porto e na navegação, são conhecedores de várias dessas embarcações que sobreviveram no decorrer do tempo.

 


No passado, existiam muitas lanchas que

levavam e traziam tripulantes e pessoal das

inúmeras agências marítimas que aqui

existiam. Em outras palavras, eram os táxis

flutuantes. Na foto clicada pelo grande José

Dias Herrera vemos na imediação da Alfân-

dega, o nosso célebre cisne branco Rosa da

Fonseca e muitas lanchas que faziam serviços

gerais no estuário do Porto de Santos, algumas

sobrevivem até hoje. Acervo: L. J. Giraud

 

Vale lembrar que após a inauguração do Píer de atracação da Cosipa, no final dos anos 60, os navios ficaram proibidos de fundear no local que foi conhecido no passado como Lagamar do Enguaguaçú, em outras palavras, o fundeadouro interno do Porto de Santos. Isso, com o intuito de evitar abalroamentos durante a passagem dos navios que seguiam para a Companhia Siderúrgica Paulista. Nesse local, vários navios famosos fizeram fundeio. Entre eles o transatlântico alemão Windhuk e o italiano Conte Grande, que foram aprisionados por ocasião da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

 

Para maior clareza do que aqui digo, transcrevo trecho de um e-mail recebido do Comandante Carlos Dufriche em 8 de setembro de 2006, onde ele relata um fundeio ocorrido em 1955, quando comandava o navio Santa Rosa.

 

“Sobre o fundeio dos navios, algumas considerações preliminares: ancorar é um termo que não se usa a bordo, como tantos outros, por exemplo, zarpar -- dizemos que o navio sai, saiu, sairá, etc. Nesta linha, "largou as amarras"  idem, navio larga os cabos (de amarração), as amarras são as correntes dos ferros (e não âncoras). Navio aderna, não se inclina (embora, quanto terminada sua construção, faça prova de inclinação). Mas, voltando ao fundeio.

 


O antigo cartão-postal mostra o pontão das barcas do Itapema, hoje

Vicente de Carvalho, onde à esquerda existe uma escada que dá acesso

às embarcações. Era onde os passageiros da Companhia Real, embarca-

vam na lancha da Aeronáutica, com destino à Base Aérea de Santos. 

Década de 1940. Acervo: L. J. Giraud

 

Não sei quando a praticagem se tornou obrigatória em Santos. Mas na década de 50 os navios de cabotagem de menos de mil toneladas de deslocamento, entravam sem prático e fundeavam em qualquer lugar, não havia um zoneamento embora o espaço não fosse muito grande. Basta você olhar os postais antigos de Santos, daqueles lássicos, com fotos tiradas do Monte Serrat.

 

Lembro-me de uma noite de 1955, em que cheguei a Santos no Santa Rosa. Era um cargueiro antigo, de 1919, do tipo chamado Laker (haviam sido construídos em série, no final da Primeira Grande Guerra por estaleiros localizados nos Grandes Lagos. Para poder sair para o mar tinham o comprimento limitado pelo das eclusas do Welland Canal, entre os lagos Erie e Ontario, cerca de 78m, mas para compensar tinham muito pontal (altura) e calado. Quase todos foram batizados originalmente com nomes de lagos. No Brasil tivemos uma meia dúzia deles).

 


O navio-escola Guanabara, hoje o Sagres da Marinha de Portugal,

no Lagamar do Enguaguaçú, em manobra de atracação, auxiliado por

rebocadores da Wilson, Sons. Início da década de 1950.

Acervo: Sérgio Fernandes Lopes

 

Mas chegando à barra, fui entrando, já conhecia o porto. Mas no fundeadouro interno, tive dificuldade em encontrar lugar. O porto estava cheio e fui seguindo em direção ao Saboó. Fundear um navio em local apertado não é fácil. Normalmente se pára a máquina e se dá um pouco à ré, quando o navio começa a movimentar-se para trás, dá-se a ordem de "Larga o ferro",  já previamente selecionado,  o de bombordo ou o de boreste. A quantidade de amarra (medida em manilhas -- as amarras são fabricadas em seções de 15 braças, unidas por manilhas. Três manilhas, por exemplo, representam 45 braças ou 82m (cada braça vale 1,829m). A quantidade (ou o filame) de amarra depende da profundidade, usualmente 3 a 4 vezes a profundidade. Em lugar de correnteza forte, ou com ventos fortes, aumenta-se o filame).

 

Voltando à minha história. O navio era lento, tinha pouca força e demorava em atender ao leme, mas cheguei a um ponto que, mesmo parecendo meio apertado, dava para fundear. Mandei largar o ferro e esperei que o navio filasse, isto é, ficasse aproado à correnteza, ou ao vento, como estavam os outros em volta. Ou seja, ao se fundear é necessário prever que o navio girará em torno do ferro, descrevendo um círculo que tem que estar livre do círculo que os navios em volta também vão descrever.  Quando o Santa Rosa começou a girar, vi que ia passar muito perto de outro, também fundeado. Ali não dava e mandei suspender o ferro para procurar um lugar melhor. Se não achasse, a alternativa seria sair a barra e fundear do lado de fora. Mas acabei achando um lugar, ainda apertado, mas que dava para passar pelo menos à noite. E assim foi, deixei um piloto de quarto no passadiço para qualquer eventualidade. Mas tudo correu bem e ao amanhecer conseguimos um lugar melhor.”

 


O cartão-postal datado de 16/01/1948, enviado pelo casal em lua-de-

mel Gecy e Lídia, mostra claramente o Centro de Santos, a Ilha Barnabé

e o fundeadouro do Lagamar. Acervo: L. J. Giraud

 

Rafael Viva, grande admirador dos navios e um dos grandes fotógrafos amadores dessas belas embarcações, como também são Silvio Roberto Smera, Fabio Fontes, Edson Lucas, José Carlos Silvares, Marcelo Machado e Antonio Giacomelli, fez o seguinte comentário, por sinal, muito interessante sobre aquela época:

 

“Puxa, bela imagem, realmente muito interessante poder ver esse tipo de foto do nosso porto talvez mais ainda para os jovens que hoje não têm tanta oportunidade de ver muitos navios atracados, devido principalmente ao desenvolvimento de tecnologias que agilizam as movimentações e fazem com que muitos navios não fiquem atracados por mais de 48 horas no cais.

 

Não tenho 30 anos e mesmo assim peguei o final de uma boa época, me lembro que passeando pelo porto via navios atracados ocupando quase todos os armazéns e hoje isso não mais acontece.


Vista aérea do terminal portuário da Cosipa – Companhia Siderúrgica

Paulista, que com a sua inauguração em 1969, impediu que houvesse

grande concentração de navios fundeados no Lagamar, com o intuito

de evitar abalroamentos. – 1995. Foto: Carlos Marques.

Acervo: L. J. Giraud

 

Nessa foto em particular os navios fundeados não causariam problemas à navegação, eles na verdade impedem pois são tantos e tão distribuídos pelo canal que acabam fechando quaisquer passagens.”

 

Finalizando este artigo, gostaria de recomendar aos leitores, para que vejam a excelente matéria da jornalista Cláudia Dominguez, aqui no PortoGente, que entrevistou o Presidente da Praticagem de Santos Fabio Melo Fontes, sobre o assunto das zonas de fundeio do porto de Santos no presente, que sobremaneira alavancou este artigo, que estava no aguardo de um incentivo, como foi a referida entrevista.

Veja mais imagens:


Atualmente, só navios necessitando de reparos ou abastecimentos,

são permitidos fundear próximo ao Centro da Cidade de Santos. Na

foto, o NSC Baha – 2006. Foto: L. J. Giraud


A pintura de Benedito Calixto mostra o Lagamar do Enguaguaçú, com
inúmeros navios fundeados no início do Século XX. Acervo: L. J. Giraud




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