Sábado, 28 Dezembro 2024

Em 1996, na companhia do jornalista Armando Akio, na época, editor do Porto & Mar do jornal A Tribuna, fizemos um artigo sobre um livro que muito me comoveu, a ponto de não esquecê-lo, pois sempre que posso, releio a obra Navios Iluminados, de autoria de Ranulpho Prata. Vale dizer que esse livro é constantemente lembrado na coluna Porto Literário de PortoGente. Eis o artigo publicado no dia 26 de outubro de 1996 em A Tribuna:

 

Autor retrata as décadas de 20 e 30

Um fiel, legítimo e autêntico retrato do trabalhador portuário de Santos das décadas de 20 e 30 é enfocado pelos olhos do médico sergipano Ranulpho Prata, autor do livro Navios Iluminados.



O livro mostra o cotidiano do trabalhador do porto no seu árduo

trabalho, como o que vemos no cartão-postal durante embarque

de café no cais santista. – Por volta de 1920. Acervo: L. J. Giraud

Ranulpho Prata congelou um período da época em que viveu e produziu um texto que mantém vivo o retrato daquele tempo. Como um fotógrafo paralisa a imagem de um instante, de um flagrante.

 

E como um fotógrafo faz, o autor de Navios Iluminado coloca luz sobre o tempo em que sua objetiva focalizou. De modo preciso, nítido, sem desfocar o que viu.

 

Centenário de nascimento

A Prefeitura e a Editora Scritta ressuscitaram este trabalho em uma obra de 180 páginas, justamente em 1996, no ano do centenário do nascimento de Ranulpho Prata, que faleceu em 1942. A primeira edição data de 1937.

 


O cartão-postal mostra o trecho do cais que vem do Armazém 1 da

CDS, até o local onde hoje está situado o pontão de embarque das

lanchas que fazem serviços de passageiros entre Santos e Vicente

de Carvalho (Guarujá). – Anos 20. Acervo: L. J. Giraud

 

Na edição do dia 17 de outubro de 1996, o Caderno Porto & Mar, de A Tribuna, publicou artigo do assessor para assuntos portuários da Prefeitura sobre a obra de Ranulpho Prata.

 

Biografia

O livro conta a história de Severino, um retirante do sertão baiano, que vem a Santos para conseguir trabalho. Ele tenta na companhia férrea São Paulo Railway (Inglesa) e em vários outros lugares. Na época, o cais se estendia do Armazém 1 ao 27.

 


O protagonista da obra Navios Iluminados, Severino, tentou

emprego na São Paulo Railway. O postal mostra a estação da

Inglesa, como era conhecido a SPR. – 1929. Acervo: L. J. Giraud

 

A concessionária particular do porto, a Companhia Docas de Santos (CDS), contratou Severino em 1926, há 81 anos. Ele morreu de tuberculose  no isolamento da velha Santa Casa antes de entrar à década de 30. A história narrada é real, de acordo com o filho do autor, Paulo Prata, e apenas o nome foi alterado.

 

Resgatando o passado

Navios Iluminados é uma viagem ao passado. O texto mostra o cotidiano do trabalhador do porto, as lutas, o drama, as emoções, os sentimentos, as alegrias.

 

Algumas cenas e passagens podem ser recuperadas visualmente por meio de cartões-postais. Eles são de imagens do período aproximado em que Severino viveu.

 

Romantismo e crueza

Passar os olhos pelos cartões-postais é ver com mais aproximação o que Severino vivenciou, é mergulhar em uma época romântica, mas nem por isso menos cruel ou dura.

 

Belíssimo cartão-postal mostrando  embarque de café, e imigrantes

no aguardo de transporte para Hospedaria dos Imigrantes. O local é

nas proximidades do Armazém 4 da Companhia Docas de Santos, vendo-

se a casa de força, que fornecia pressão para os guindastes hidráulicos

da época. Essa estação é vista pelos turistas que utilizam o passeio

pelo Centro Histórico através do bondinho. Início do Séc. XX.

Acervo: L. J. Giraud

 

Os trabalhadores, por exemplo, tinham que carregar sacos de café nas costas. Não era serviço para qualquer um; O tempo e a tecnologia trouxeram máquinas, equipamentos e outros sistemas de modernização das operações, mas não conseguem eliminar o homem o trabalho, pois ele é necessário para lidar com os aparelhos. É ele que os move, que dá alma, vida e ânimo aos equipamentos.

 

Vapor atracando no cais causava alvoroço

O Conte Rosso era um navio de passageiros italiano que atracava no cais da Companhia Docas de Santos. Ele ilustra bem a passagem da página 18 do livro Navios Iluminados: “E quando o navio, já pertinho, atracava lentamente, o povo se alvoroçava, começando a gritar, rir e chorar, agitando as mãos, lenços e chapéus, atirando beijos frenéticos. Um desespero. A bordo, igual excitação. A amurada, de ponta a ponta, mandava para terra os mesmos gritos, os mesmos risos, acenos e beijos.

 

Um navio de passageiros como o

Conte Rosso causava grande alvoroço

no pessoal que aguardava a sua atra-

cação. Cartão-postal ilustrando um

pôster da Companhia Lloyd Sabaudo. 

Acervo: L. J. Giraud

 

O encontro era de se ver. Abraços de quebrar ossos, beijos violentos e sem fim, tremuras de emoção, risos e lágrimas misturados na mesma face. A alegria contagiava o pessoal do serviço, que também ria, achava graça, fazia pilhérias”. Severino, quando desempregado, ficava perambulando pelo cais do Armazém 1 ao 27 e via este espetáculo, em alguns dias, até três vezes, em lugares diferentes.

 

Outeirinhos tinha dois pequenos montes

A região portuária dos Outeirinhos é mostrada neste cartão-postal, extraído a partir de uma imagem da época das suas demolições. A área, hoje, é onde fica o cais do Armazém 23, perto da imagem de Nossa Senhora de Fátima. Em tempos passados, no local existiam dois pequenos montes, foram demolidos e utilizados como aterro para a expansão do prolongamento do cais. Nas páginas 69 e 70 de Navios Iluminados, o autor narra um dia de trabalho na vida de Severino no batelão Valongo, embarcação de transporte de lama que atracava nos Outeirinhos: “Às quatro e meia da manhã, quando o dia vinha ralando, Severino passou a mão numa trouxa que guardava objetos indispensáveis e foi para os Outeirinhos, onde encostavam os batelões para dormir. Estava frio,e a garoa passeava pelas ruas, fazendo círculos bonitos em torno dos focos elétricos ainda acesos”.

 


A rara imagem mostra ao fundo, os Outeirinhos quando do começo

das suas demolições. Vendo-se o primeiro guindaste de nome Sansão,

pertencente à Companhia Docas de Santos. – Cartão-postal da

primeira década do Século XX. Acervo: L. J. Giraud

 

Navio Cap Arcona era o rei dos mares

O transatlântico alemão Cap Arcona, da empresa de navegação Hamburg-Sud, marcou época no porto, com suas três chaminés. O navio de passageiros faz parte da biografia de Severino, contado por Ranulpho Prata na página 107 do livro: “Ao deixar a cantina, Severino encontrou-se com Pelício e Pepe, que vinham do jantar na do 20, porque estavam mal com o cantineiro do 23, por causa de fiados. Saíram andando os três carvoeiros, à espera de que o serviço recomeçasse. As luzes se acenderam, clareando a longa rua do cais. No armazém seguinte, o 24, o Cap Arcona também se iluminou, ficando, de longe, como um presépio. Ia largar daí a pouco. Muita gente subia e descia. Junto á escada, os grupos cresciam constantemente. Chegavam apressados, carregados de embrulhos, os passageiros em trânsito e os navios”.

 

Para finalizar, recomendo esse livro aos leitores que apreciam tudo que pertence ao glorioso passado do Porto de Santos.


O grandioso transatlântico alemão Cap

Arcona da Hamburg-Sud, marcou época

no Porto de Santos de 1927 a 1939, ano

que foi deflagrada à Segunda Guerra Mundial.

Acervo: L. J. Giraud

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