Sexta, 17 Mai 2024

(Cesar Louzada [1])

 

Pouco se fala acerca do grande número de cargas que são abandonadas diariamente nos portos brasileiros por seus Consignatários. Em verdade, as autoridades não dão a devida atenção a um problema que afeta em muito a logística dos grandes transportadores marítimos, causando-lhes enormes prejuízos.

 

Os produtos de importação abandonados afetam os transportadores marítimos na medida em que seus equipamentos de carga (contêineres), onde estão acondicionadas estas mercadorias ficam retidos por meses ou até anos nos portos de descarga, aguardando o início do procedimento de desembaraço aduaneiro ou, caso isto não ocorra, seja finalmente decretado o perdimento da mercadoria com a conseqüente ordem de destruição, leilão, doação ou destinação final.

 

Estudos recentes do Centro Nacional de Navegação (Centronave) dão conta de que existem nos portos brasileiros aproximadamente 5 (cinco) mil contêineres abandonados por seus importadores. Vários são os fatores que levam estas mercadorias a ficarem retidas nos portos, tais como problemas burocráticos, falência da empresa importadora, distratos comerciais, entre outros.

 

O presente artigo visa demonstrar os motivos do abandono de mercadorias nos portos brasileiros e suas e conseqüências para os Terminais, Alfândega e principalmente, para os Transportadores marítimos, principais prejudicados, na medida em que vêem seus equipamentos de trabalho serem indevidamente retidos.

 

 

1. Abandono - Definição legal

 

O Regulamento Aduaneiro, Decreto nº 6.759, de 5 de fevereiro de 2009, em seus artigos 642 a 648 define o abandono de mercadorias e determina suas hipóteses de incidência.

 

À luz do artigo 642, considera-se abandonada a mercadoria que permanecer em recinto alfandegado sem que o seu despacho de importação seja iniciado no decurso de 90 (noventa) dias da sua descarga [2]. Outras situações e prazos menos freqüentes também acarretam o abandono das mercadorias, contudo, a prática demonstra que em sua maioria, o abandono deriva da simples inércia de consignatários e importadores em iniciar ou retomar o procedimento de desembaraço aduaneiro dentro do prazo legalmente estabelecido.

 

 

2. Do regime de entrada dos contêineres no Brasil

 

Os contêineres entram e saem do país sob o guarda-chuva do regime aduaneiro especial de admissão temporária automática, nos moldes da Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal IN-SRF 285, de 14 de janeiro de 2003[3]:

 

Tal normativa ratifica o disposto no Parágrafo Único do artigo 24 da Lei 9.611/98 que considera referido equipamento como um bem distinto das mercadorias importadas e nele contidas.

 

Isto significa dizer, que os contêineres entrados no país não devem, sob hipótese alguma, permanecer parados por tempo indeterminado, devendo ser imediatamente desunitizados e reutilizados para acondicionamento de bens na exportação.

 

Ao contrário das cargas de importação, os contêineres entram no país sabendo-se que irão deixá-lo em breve, posto que estão em trânsito, sendo certo ainda que somente a carga importada será o objeto do desembaraço aduaneiro.

 

O documento que comprova esta movimentação de entrada e saída do país é o conhecimento de embarque (Bill of Lading), nos termos do artigo 5º, da Instrução Normativa SRF nº 285 e seus parágrafos, inclusive quando se tratar da entrada de equipamentos vazios[4]:

 

É através da apresentação dos conhecimentos de embarque que a empresa estrangeira ou sua representante subsidiária no país comprovam a propriedade dos equipamentos, bem como seu vínculo jurídico ao transportador, de forma que sua apreensão conjunta com as mercadorias configura ilegalidade.

 

 

3. A ineficiência Alfandegária

 

Dentre os vários motivos que resultam no elevado número de mercadorias abandonadas está a incapacidade da Alfândega em atender a crescente demanda de importação. O recente aumento nos volumes de cargas de importação pós crise mundial 2008/2009 tiveram um impacto avassalador na quantidade de mercadorias abandonadas.

 

A falta de uma estrutura na Receita Federal, em especial da Alfândega,  para processar o grande volume de cargas provenientes do exterior que lhes são submetidas diariamente somadas ao número insuficiente de auditores fiscais responsáveis pelos trâmites burocráticos de destinação das cargas abandonadas tem como conseqüência direta a morosidade deste órgão em dar um destino final a estas mercadorias.

 

Muitas vezes, as mercadorias ficam meses sem que o Procedimento Administrativo Fiscal que visa à destinação das cargas seja instaurado. Ainda que os transportadores marítimos denunciem o abandono das mercadorias através de petições de desunitização e devolução de seus contêineres, é certo que a Alfândega permanece inerte. 

 

A Alfândega alega em sua defesa que não tem como saber quando as mercadorias ultrapassam o período legal para desembaraço, vez que os terminais depositários que deveriam emitir as Fichas de Mercadoria Abandonadas (FMA), imediatamente após o decurso do prazo legal, não o fazem, ou, quando emitem, fazem fora do prazo, sendo este o primeiro momento em que tomam conhecimento do abandono. 

 

A falta de espaço no porto também é uma das justificativas da Alfândega, que não têm lugar apropriado para manter as cargas abandonadas e, por este motivo as mantêm em seus respectivos cofres de carga.

 

Não bastasse o quanto acima informado, existe ainda uma nítida ausência de mecanismos de destinação final das mercadorias cujo perdimento já tenha sido decretado em favor da União. O volume de cargas aguardando para serem leiloadas é enorme e não corresponde ao número de leilões marcados.

 

Segundo noticiou o jornal Estado de São Paulo[5] em 05/09/2010, há movimentos favoráveis à transferência da realização dos leilões para a iniciativa privada, vez que a Receita Federal não poderia concentrar todos os serviços. Ainda segundo o jornal, no entender de Elias Gedeon, presidente do Centro Nacional de Navegação (Centronave) “a Alfândega deveria se concentrar na sua atividade-fim que é fiscalizar as operações”.

 

Ao mesmo tempo, cita a opinião do diretor do comitê de assuntos jurídicos da câmara Brasil-China, Fábio Gentil, para quem “o processo de destinação das mercadorias (leilões, doações, destruição) também deve ser reformulado, já que hoje é considerado moroso e incompatível com a demanda. Em algumas localidades, afirma o advogado, a Receita realiza apenas um leilão por ano”.

 

Não obstante, reportagem do Jornal Valor Econômico[6] datada de 17/11/2010, dá esperanças de melhorias nos leilões realizados pela Alfândega ocorram em breve. Segundo o jornal, o entrave causado por milhares de contêineres apreendidos e abandonados diariamente nos portos do país poderá ser reduzido com o uso da tecnologia. A Receita Federal vai adotar o pregão eletrônico para leiloar as mercadorias que ficam retidas por meses – às vezes, mais de um ano. Por enquanto, o uso do pregão eletrônico ficará restrito às compras feitas por empresas utilizando certificação digital.

 

Quaisquer que sejam as medidas a serem adotadas para acelerar o processo serão bem-vindas. Por certo, o sistema atualmente adotado tornou-se desatualizado e deficitário, deixando de atender as necessidades dos portos brasileiros e não favorecendo a rápida e necessária destinação de mercadorias.

 

 

4.Da retenção ilegal dos contêineres pela Alfândega

 

Para que possamos entender o mecanismo da retenção ilegal dos contêineres dentro do contexto do comércio exterior, primeiramente precisamos saber onde começa e termina a responsabilidade dos armadores no que pertine as mercadorias por eles transportadas. 

 

Segundo Eliane M. Octaviano Martins[7], “Conceitualmente, por contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias entende-se aquele pelo qual um empresário transportador (Carrier) se obriga, mediante remuneração (frete), a transportar por mar, de um porto para outro, certa quantidade de mercadoria que lhe foi entregue pelo embarcador (shipper) e a entregá-la a um destinatário”.

 

Neste sentido, o Decreto-lei nº 116, de 25 de janeiro de 1967, em seu artigo 3º[8] prevê ainda que a responsabilidade do transportador começa com o recebimento da mercadoria a bordo, e cessa com a sua entrega à entidade portuária, no porto de destino, ao costado do navio.

 

Encerrada a responsabilidade do transportador marítimo no que diz respeito ao transporte das mercadorias em si, surge o dever do consignatário das mesmas em iniciar o procedimento de desembaraço aduaneiro de suas cargas e devolver os equipamentos de transporte ao armador.

 

Ocorre que, quando o importador não cumpre com suas obrigações contratuais e permite que as mercadorias ultrapassem o período de 90 dias disposto no regulamento aduaneiro para início do procedimento de desembaraço, entrando assim em situação de abandono, nasce o DEVER da Alfândega em iniciar imediatamente o Procedimento Administrativo Fiscal (PAF) que ao final decretará o perdimento destas mercadorias em favor da União.

 

Neste momento, cumpre lembrar que todas as atividades da administração pública Federal, Estadual ou Municipal estão diretamente vinculadas ao princípio da legalidade[9], segundo o qual o Estado deve se submeter ao império da lei, ou seja, o princípio da legalidade é a expressão maior do Estado Democrático de Direito, a garantia vital de que a sociedade não está presa às vontades particulares, pessoais, daquele que governa.

 

Note-se que o contêiner é equipamento destinado ao transporte de mercadorias, e não ao seu armazenamento, portanto, a manutenção das cargas no interior daqueles configura retenção indevida e atrai para o Estado a responsabilidade de indenizar o armador, nos termos do art. 37, § 6º da CF[10], a partir do momento em que este, através da Alfândega, mantém-se inerte quanto ao requerimento de desunitização dos contêineres.

 

Ante tais circunstâncias, seria obrigação normal da Alfândega iniciar, no 91º (nonagésimo primeiro) dia de abandono destas mercadorias no porto de destino, o correspondente PAF, mas infelizmente, não é o que se observa na prática. Ainda que instados a dar início ao Procedimento Administrativo Fiscal, muitas vezes a autoridade alfandegária se mantém inerte.

 

É fato que a inobservância destes prazos têm conseqüências diretas sobre os administrados, em especial, aqueles armadores em cujos contêineres estão acondicionados as mercadorias abandonadas por seus consignatários. Ou seja, a incapacidade da Alfândega de processar e dar destino àquelas mercadorias importadas em situação de abandono tem como principal conseqüência a retenção indevida dos equipamentos de carga dos transportadores marítimos.

 

Contudo, a apreensão da unidade de carga que deveria ser utilizada exclusivamente durante o transporte marítimo para acondicionamento de bens de terceiros, considerados abandonados pelas autoridades alfandegárias é ato ilegal e afronta o disposto no art. 24, Lei 9.611/98[11].

 

À luz do dispositivo legal supracitado, a unidade de carga, seus acessórios e equipamentos não constituem embalagem, sendo, portanto, equipamentos destinados única e exclusivamente ao transporte de mercadorias, notando-se ser indevida sua utilização para armazenamento de cargas.

 

Ressalte-se, igualmente, que os transportadores marítimos não podem ser prejudicados pela omissão do importador e/ou da autoridade aduaneira em dar destinação a estas cargas. Tampouco existe em nosso ordenamento jurídico qualquer norma que imponha ao transportador marítimo a obrigação de esperar o término do desembaraço aduaneiro, ou ainda, a conclusão do procedimento de destinação para reaver seu equipamento.

 

Conclui-se, portanto, que a retenção dos equipamentos dos transportadores para armazenagem de mercadorias em situação de abandono, ou cujo Procedimento Administrativo Fiscal (PAF) que decretará seu perdimento ainda que não tenham sido iniciado ou concluído é medida a nosso ver, ilegal.

 

 

5. Da obrigação dos terminais em comunicar o abandono

 

Esgotados os prazos legais prescritos no Regulamento Aduaneiro sem que o consignatário tenha dado início ao desembaraço das suas mercadorias, surge o dever dos depositários em comunicar tal fato em até 5 (cinco) dias à unidade da Alfândega local[12]. Esta comunicação se dá através da emissão de um documento denominado Ficha de Mercadoria Abandonada (FMA).

 

Esta comunicação dentro do prazo é importante não somente para que a Alfândega possa dar o início ao PAF que resultará na lavratura do auto de infração, do Termo de Guarda e Apreensão, encerrando com a decretação do perdimento destas mercadorias em favor da União, mas, também garantem ao terminal a possibilidade de ressarcimento ao mínimo de suas despesas com armazenagem até a data em que retirar a mercadoria[13].

 

 

6. Da alegada falta de espaço para a armazenagem de cargas abandonadas nos terminais portuários

 

Via de regra, as instalações portuárias depositárias de mercadorias são alfandegadas por intermédio de Ato Declaratório Executivo, após terem cumprido as exigências da Lei e dos atos normativos reguladores vigentes, em especial, o artigo 13º e seus incisos I e IV, do Decreto nº 6.759/2009[14].

 

Neste sentido, o terminal depositário, na qualidade de administrador da instalação portuária de uso público, devidamente alfandegado, dentre as exigências da legislação de alfandegamento, deve comprovar possuir a infra-estrutura necessária à armazenagem de produtos/mercadorias em processo de despacho aduaneiro, quer seja importação, exportação ou até mesmo de cargas apreendidas pelas autoridades ou em processos de perdimento e, também, satisfazer a assunção de responsabilidade tributária das cargas sob sua guarda, pela apresentação do competente Termo de Depositário Fiel que é parte integrante do processo de alfandegamento.

 

Em que pese o acima dito, muitos terminais depositários destas mercadorias abandonadas alegam a ausência de espaço físico ou apropriado para o depósito de mercadorias eventualmente desovadas em decorrência de mandados de segurança impetrados pelos transportadores que visam à restituição de seus equipamentos.

 

Tais alegações não encontram respaldo jurídico, haja vista que a própria Secretaria da Receita Federal editou a Instrução Normativa nº 37, de 24/06/96, alterada pela Portaria SRF nº 969, de 22 de setembro de 2006, que disciplina o alfandegamento de portos organizados e instalações portuárias de uso público ou de uso privativo, conforme autorizou o Decreto n° 1.912/1996, estabelecendo que os portos e instalações portuárias devem conter depósito para armazenagem de mercadorias.

 

Ainda que se reconheça a eventual dificuldade dos terminais em obter espaços livres dentro de suas áreas alfandegadas para o armazenamento de mercadorias abandonadas ou apreendidas, tal desculpa não elide sua responsabilidade.

 

 

7. A Ordem de serviço nº 4, de 29 de setembro de 2004 – Alfândega de Santos

 

A Alfândega do porto de Santos sempre sofreu muito com os inúmeros casos de abandonos de carga e as infindáveis petições de desova de contêineres protocoladas pelos transportadores marítimos que visavam o retorno de suas unidades.

 

Diante de tal problemática, a Delegacia da Receita Federal de fiscalização em São Paulo achou por bem emitir, em 29 de Setembro de 2004, a Ordem de Serviço nº 4[15], em que passava aos terminais a responsabilidade pela desova das mercadorias importadas apreendidas pela Alfândega do Porto de Santos.

 

Muito embora a intenção tenha sido boa, na prática, a norma não surtiu o efeito desejado, vez que os terminais alegavam que não poderiam diligenciar a desova das unidades de carga a não ser que esta desova seja ordenada pela própria Receita Federal.

 

Também alegavam que na qualidade de fiel depositário das mercadorias era sua obrigação manter as cargas protegidas e que a melhor forma de fazê-lo seria mantê-las protegidas dentro dos contêineres até que a pena de perdimento seja decretada e as mercadorias leiloadas.

 

 

8. Prejuízos aos armadores

 

Para que se tenha uma idéia do prejuízo que os transportadores marítimos tem com a retenção de suas unidades de carga, cada equipamento contendo cargas abandonadas por seus importadores ficam indisponíveis para serem empregados em novas aventuras marítimas e, portanto, impossibilitados de gerarem novos fretes.

 

E não é só isto, como a grande maioria dos contêineres de importação é reaproveitada na exportação, o armador se vê obrigado a modificar totalmente sua logística interna para que novos contêineres vazios sejam enviados a determinado porto para cobrir a falta daqueles equipamentos apreendidos pela Alfândega. Por óbvio, o espaço ocupado por estes contêineres vazios poderia ser utilizado para gerar novos fretes, razão maior da existência dos transportadores marítimos.

 

E não é só, dependendo do tempo que o contêiner permanece parado aguardando que o procedimento administrativo fiscal determine o perdimento ou destinação àquelas mercadorias, podem ocorrer avarias ou até a perda total destes equipamentos que ficam expostos ao tempo sem a mínima conservação. 

 

Desta forma, a retenção dos equipamentos de transporte (contêineres) vem gerando prejuízos diários ao transportador marítimo, tendo em vista serem os contêineres elementos essenciais à atividade fim do armador, ficando impedido de explorar livremente sua atividade econômica, prejudicada pela retenção indevida da unidade destinada exclusivamente ao transporte de mercadorias.

 

 

 

CONCLUSÃO

 

Diante de todo o exposto e considerando o disposto na legislação, no que diz respeito a sua natureza jurídica, regime de entrada e saída do país, direito de propriedade concluímos facilmente que as unidades de carga (contêineres) não podem ser apreendidas conjuntamente às mercadorias neles acondicionadas, posto que com ela não se confundem.

 

A jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais bem como a legislação pátria tampouco deixa dúvidas de que sua retenção é ato ilegal e deve ser combatido com veemência.  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Artigo: “5 mil contêineres bloqueiam portos”. Autor: Renée Pereira. O Estado de São Paulo – (http://www.estadao.com.br) – 05/09/2010

 

Artigo: “Mercadorias apreendidas pela Receita terão leilão eletrônico”. Autor: André Borges. Valor Econômico (http://www.valoronline.com.br) – 17/11/2010

 

Octaviano Martins, Eliane Maria. Curso de direito marítimo, Volume II – Barueri,SP: Ed. Manole,2008.

 

Relator: Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – Sentença proferida nos autos do processo nº 2008.70.08.000269-0/PR -

 

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