O processo de trabalho nos portos é de extrema importância, porém, pouco estudado. Existem trabalhos que se referem a importância do processo de trabalho para a organização dos trabalhadores portuários, para o estabelecimento dos laços de solidariedade, para a criação da cultura do trabalho [1], porém, poucos se detém em apresentar detalhadamente como se estabelece e se desenvolve o processo de trabalho nos portos. Um desses trabalhos é o artigo de Anna Green, The work process [2], publicado na coletânea organizada por Sam Davies, sob o título Dock workers. International Explorations in Comparative Labour History. 1790-1970.
Para Green, para podermos compreender a organização da indústria portuária em todos os sentidos, seja quanto aos empregadores, seja quanto aos trabalhadores, devemos inicialmente destrinçar o processo de trabalho portuário. Esse, segundo a autora, está centrado em 5 pilares: processo de contratação; saberes e/ou especialização dos trabalhadores; contramestres e controle sobre trabalho; natureza do trabalho propensa a acidentes e desenvolvimento gradual das ferramentas e maquinários, culminando na radical tecnologia da conteinerização. Porém, podemos reduzir a três pilares: natureza do trabalho, qualificação e contratação.
A gênese do processo de trabalho está na própria natureza deste. O trabalho portuário é conhecido por ser um trabalho duro, insalubre, perigoso, ou seja, propenso a acidentes. O manuseio das cargas e o embarque e desembarque das mesmas exige dos trabalhadores uma especialização que permita a redução do número de acidentes. Nesse caso, faz-se necessário o segundo pilar: qualificação. Não há como manusear cargas sem o saber específico, que permite o conhecimento do tipo de carga e da melhor forma de embarcar ou desembarcar, diminuindo os prejuízos quanto à avaria da carga, mas principalmente preservando a vida dos trabalhadores. Porém, o estabelecimento de um quadro de trabalhadores especializados depende do tipo de contratação vigente no porto, que resulta em quem exerce o controle sobre o trabalho.
Existem dois principais tipos de contratação: a casual e a não-casual. Na primeira, os trabalhadores não possuem cadastro ou registro em órgão ou sindicato e afluem ao porto em busca de um dia de trabalho. Esse tipo de contratação tem como imagem famosa as docas norte-americanas, que eram dominadas pelas gangues que contratavam os trabalhadores conforme o grau de relacionamento com as gangues e com identificações, principalmente, de caráter étnico [3]. Nesse caso, o controle do trabalho fica na mão dos líderes das gangues ou dos contramestres indicados pelas gangues ou grupos que organizam o trabalho portuário e, em muitos casos, os trabalhadores casuais eram homens com baixa ou nenhuma qualificação para o tipo de serviço.
A contratação não-casual pode ser feita com intermediários, Ogmos ou sindicatos, ou diretamente com as operadoras portuárias. No caso dos Ogmos ou operadoras portuárias, o controle sobre o trabalho é feito pelos empresários, através de fiscais ou contramestres contratados diretamente pela operadora. No caso dos sindicatos, o controle do trabalho é feito pelos trabalhadores. A gestão e distribuição do trabalho cabem ao sindicato e o controle do processo de trabalho é feito por contramestres indicados pelos sindicatos [4]. Um bom exemplo é o controle feito pelos estivadores de Santos, onde no início o contramestre era um cargo de confiança e, depois, passou a ser feito um rodízio para a posição, onde todo e qualquer estivador poderia exercer o cargo. Na contratação não-casual são estabelecidos critérios para a contratação tal como a qualificação/especialização para o exercício da atividade, o que garante maior segurança.
Porém, esses três pilares são modificados conforme o desenvolvimento das tecnologias de armazenamento e manuseio das cargas. Segundo Green, desde o século XVII o processo de trabalho foi mudando devido a inserção da tecnologia, porém, para a autora, o momento mais dramático aconteceu após a criação do container, na segunda metade do século XX. Segundo ela, nenhuma tecnologia foi tão abrupta e tão revolucionária nos portos quanto a conteinerização, principalmente, no que se refere ao trabalho, pois até então, nenhuma tecnologia havia afetado a equipe/terno, a mais importante unidade de trabalho portuário.
Mas, como exposto no título do livro que se propõe a uma análise entre 1790 e 1970, o artigo não chega a nos revelar como ficou o processo de trabalho após a introdução do container. Essa é uma tarefa de extrema importância, que deve ser tomada pelos estudiosos e pesquisadores dos portos. Para que possamos compreender a atual organização da indústria portuária e então debater e gerar produtos que subsidiem a criação de políticas para o desenvolvimento dessa indústria, precisamos entender como o processo de trabalho pós-conteinerização se estruturou, quais as formas de contratação estabelecidas, quais as qualificações necessárias e, principalmente, qual a atual natureza do trabalho portuário. Conjecturar sobre os portos é fácil, difícil é estudá-los, olhá-los com o olhar do cientista, distanciado e despretensioso, porém, atento para a necessidade de descobrir a realidade, de forma a trazer aquilo que se espera da ciência: o desenvolvimento e a melhoria das condições de vida.
[1] Entre esses podemos citar os trabalhos de SILVA, Fernando Teixeira da. Operários sem patrões. Os trabalhadores de Santos no entreguerras. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2003 e de CRUZ, Maria Cecilia Velasco. Virando o Jogo: Estivadores e Carregadores no Rio de Janeiro da Primeira República. Tese (doutorado em Sociologia) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1998.
[2] GREEN, Anna. The work process. In DAVIES, Sam et all. (Ed). Dock workers. International Explorations in Comparative Labour History. 1970-1970. Aldershot: Ashgate, 2000
[3] Para mais informações ver DAVIS, Colin J. Formation and reproduction of dockers as na occupational group. In DAVIES, Sam (Ed.) Dock workers. International Explorations in Comparative Labour History. 1970-1970. Aldershot: Ashgate, 2000
[4] Cada categoria tem a sua forma de exercer controle sobre o processo de trabalho. Mas, na maioria das vezes, existe em cada terno um trabalhador responsável pela execução do trabalho e pelo bom andamento da atividade, de forma a preservar a integridade física e mental dos trabalhadores.