Costume. Esta palavra é bem corriqueira em nossas vidas. “O João tem costume de falar alto”, “O José costuma dormir de meias”, “Eu costumo vir a esta praça todos os dias”. Segundo estas frases, costume significa algo que fazemos com certa freqüência, ou seja, que é comum a nós. Conforme o Dicionário Houaiss, costume significa hábito, prática freqüente, como as frases mostram; mas, também significa “modo de pensar e agir característico de pessoa, grupo social, povo, nação na contemporaneidade ou numa determinada época” [1]. Este é o significado que nos interessa. Isto porque os costumes podem mostrar como um grupo social, como a classe trabalhadora, vive e dá sentido as suas relações com o trabalho, com a família, com os amigos, com a cidade.
Deparei-me com esta questão quando estava lendo a introdução do livro Costumes em Comum (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), do historiador inglês Edward Palmer Thompson (1924-1993). Thompson, nesse e em outros livros [2], se debruçou sobre a classe trabalhadora inglesa dos séculos XVIII e XIX com o objetivo de demonstrar como ela constrói a sua história, através da reunião de elementos que mostram como os seus modos de ser e viver o auxiliara na percepção dos interesses em comum existentes e permitiram que a classe trabalhadora desenvolvesse uma consciência, o que torna capaz a luta para dissipar o conflito capital-trabalho.
No texto citado, Thompson fala do costume da classe trabalhadora. Para ele, costume é a mentalidade, o contexto que aparece no ambiente em que vive esse grupo, demonstrando os costumes que o grupo desenvolve. Ou seja, os modos de viver da classe trabalhadora compõem os seus costumes, o que se tornam práticas próprias desta classe. Isto permite que a classe se identifique por partilhar práticas comuns, que aos poucos, vão constituindo uma cultura própria.
Quando falamos deste aspecto, porém, parece que nos dirigimos apenas aos costumes que a classe trabalhadora desenvolve fora de seu ambiente de trabalho. Entretanto, como se desenvolve o costume na profissão a ponto de ser introjetado por toda a classe trabalhadora no seu cotidiano? Segundo Thompson, o costume aparecerá nos momentos de conflito. É quando notaremos a existência de elementos comuns a todos que são tomados como formas de resistência.
No século XVIII, o costume constituía a retórica de legitimação de quase todo uso, prática ou direito reclamado. (...) Longe de exibir a permanência sugerida pela palavra ‘tradição’, o costume era um campo para a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes. (p. 16)
Os costumes são criados pelas práticas do ofício e por ela são transmitidos. Porém, é nos momentos de conflito que os costumes de profissão são exacerbados. Tal questão me interessou muito em relação aos portuários. Ao revisitar as pesquisas sobre a construção do closed-shop no Brasil, percebi que os costumes do ofício se constituíram como práticas de resistência para que o sistema viesse a existir e se perpetuar por mais de 50 anos [3]. O ofício foi invocado quando o closed-shop foi constituído. Afinal, o mercado deveria ser para aqueles que sobreviviam da atividade portuária. E somente aqueles que a exerciam diariamente sabiam como manejar as cargas, como conferi-las, como consertá-las, etc. O ofício só era conhecido para aqueles que tinham como única fonte de renda o trabalho nos navios que aportavam.
Para que o closed-shop pudesse sobreviver, mais uma vez o ofício se fez presente. Para que os trabalhadores pudessem compor o quadro de associados dos sindicatos e pudessem ter seu local no mercado de trabalho, primeiramente eles deveriam conhecer o oficio que pleiteavam. Somente entravam nas categorias aqueles que comprovassem, por meio de concurso público, que conheciam a profissão [4]. Para Thompson, ao reivindicar o ofício, colocava-se a necessidade de transmissão das práticas profissionais, que poderiam ser passadas aos filhos ou aqueles que se interessassem. Porém, esta transmissão não era meramente a passagem de técnicas específicas, era a transmissão de uma sabedoria, que não era constituída individualmente, mas coletivamente.
O aprendizado, como iniciação em habilitações dos adultos, não se restringe à sua expressão formal na manufatura, mas também serve como mecanismo de transmissão entre gerações. (...) O mesmo acontece com os ofícios que não tem um aprendizado formal. Com a transmissão dessas técnicas particulares, dá-se igualmente a transmissão de experiências sociais ou da sabedoria comum da coletividade. (p. 17-18)
O costume se constitui nas trocas cotidianas entre as gerações, que não passam somente os conhecimentos técnicos de sua profissão, mas também as suas experiências dentro e fora do ofício. Nesse sentido, penso que este texto de Thompson nos ajuda a pensar que as antigas e as novas gerações de portuários podem e devem conviver de forma harmônica. Aos antigos cabe transmitir o ofício, tão bem aprendido e lapidado nos muitos anos de trabalho portuário. Aos novos cabe ouvir e aprender não apenas o ofício, mas todas as experiências adquiridas pelos antigos para e pelo ofício e que compõem não apenas um modo de ser portuário na beira do cais, mas que extrapola os armazéns e toma conta das ruas, das casas, das cidades como um todo, imprimindo a elas um modo de viver característico daqueles, que como poucos, têm o costume de viver do mar.
Referência Bibliográfica
THOMPSON, E. P. Introdução: Costume e Cultura. In Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998
[1] Dicionário Houaiss On-Line http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=costume&stype=k&x=14&y=7. Acesso em 18/05/2008
[2] Só para citar dois: A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, 3 v.; NEGRO, Antonio Luigi e SILVA, Sergio (orgs.). As Peculiaridades dos Ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001.
[3] O sistema de closed-shop foi regulamentado pela Consolidação das Leis do Trabalho, de 01 de maio de 1943; entretanto, já se constituía como prática entre os estivadores desde a década de 1930, quando foi legitimamente reconhecida pelo então Presidente Getúlio Vargas. Para mais informações ver SILVA, Fernando Teixeira da. Operários sem patrões. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003 e CRUZ, Maria Cecilia Velasco. Virando o Jogo: Estivadores e Carregadores no Rio de Janeiro da Primeira República. Tese (doutorado em Sociologia) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1998.
[4] Exceção para os estivadores santistas, que até a passagem da escala de trabalho para o OGMO escolhiam os trabalhadores que entrariam para o quadro de associados do sindicato, mediante o critério da geração familiar ou pela produção anotada na carteira. Mais informações ver. SARTI, Ingrid. Porto Vermelho: os estivadores santistas no sindicato e na política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981