Quinta, 25 Abril 2024

Nas últimas semanas acompanhei a discussão provocada pelos artigos da coluna Debate Sindical (‘Sindicatos se partidarizaram’, ‘Sindicatos perderam o referencial político e ideológico’ e ‘Sindicalista em Desespero’). Todos eles falam da mudança de rumo acontecida aos sindicatos após a década de 1990, com a perda dos referenciais orientadores das entidades e, principalmente, um afastamento da base. Nesta coluna, na semana passada, também toquei no assunto, ao buscar o resgate do sentido do 1º de maio. Além dos artigos, os debates produzidos apresentaram a necessidade de resgatar a identidade profissional e o descaso dos sindicatos com este processo. Mas, porque isto está acontecendo?

 

Muitos são os pesquisadores que se debruçaram sobre este problema, porém, um filósofo austríaco, preocupado com os rumos do capitalismo, soube nos dar algumas possibilidades por tal crise e, ainda, apontar caminhos. André Gorz (1923-2007), no livro Metamorfoses do Trabalho: Crítica da Razão Econômica (São Paulo, Annablume, 2003), aponta os efeitos que as mudanças no processo de trabalho geraram aos sentidos do trabalho.

 

Para ele, a característica mais importante do trabalho,

 

... aquele que ‘temos’, ‘procuramos’, ‘oferecemos’ – é ser uma atividade que se realiza na esfera pública, solicitada, definida e reconhecida útil por outros alem de nós e, a este título, remunerada. É pelo trabalho remunerado (mais particularmente, pelo trabalho assalariado) que pertencemos à esfera pública, adquirimos uma existência e uma identidade sociais (isto é, uma ‘profissão’), inserimos em uma rede de relações e intercâmbios, onde a outros somos equiparados e sobre os quais vemos conferidos certos direitos, em troca de certos deveres. (p. 21)

 

Porém, para Gorz, esta característica vai se esvaindo concomitantemente as mudanças do processo de trabalho. A passagem do fordismo/taylorismo para o toyotismo, da produção em massa e rotinizada para a produção em célula e altamente informatizada, ou seja, da ultra-especialização para a polivalência tecnológica, faz com que o trabalhador se torne híbrido, sem referências ao ofício. Tal elemento auxilia no processo de individualização e conseqüente desintegração da classe operária.

 

Com relação a identidade, esta passa a ser fragmentada. Isto, pois, ao adquirimos uma identidade social baseada no trabalho, mais especificamente na profissão, a idéia de  um mundo onde a nossa profissão é resultado de inúmeros ofícios fará com que construamos uma identidade fragmentada, pois somos compostos por um emaranhado de habilidades oriundas de diversas áreas. A idéia da identidade profissional se perde e dá lugar a outros tipos de identidades sociais, compostas pelas outras esferas que o indivíduo freqüenta. Ou seja, uma identidade decomposta em diversas identidades. Isto faz com que os indivíduos não vejam o trabalho como integrador ou apenas como o único fator integrador. E como resolvemos esta questão?      

 

Dirá Gorz, primeiramente, que caberá ao sindicato desvelar ao trabalhador, “... a função, a finalidade e as conseqüências societais de uma produção determinada .” (p.  87), pois as entidades estão em melhor posição para assumir a responsabilidade de produzir tal consciência e provocar os debates necessários para a disseminação destas idéias. Isto, pois, o trabalhador:

 

Não pode adquirir e desenvolver em seu trabalho uma tal capacidade de questionamento político: ela supõe uma cultura mais vasta que a cultura técnica, supõe outros centros de interesse, atividades que ultrapassam o papel profissional, uma vida que não é preenchida integralmente pelo trabalho, supõe, em suma, exatamente o contrário da identificação ao trabalho ... (p. 87)

        

Segundo o autor, não é difícil adquirir tal cultura, pois temos esta oportunidade com a introdução da técnica, que aumenta a eficácia do trabalho e reduz sua duração, o que permite um maior tempo livre. Porém, o trabalho está cada vez mais distante da vida cotidiana, pois a técnica também “... separa o produtor do produto, a tal ponto que ele não conhece mais a finalidade daquilo que faz” (p. 93)

 

Este é o nosso ponto falho. Os sindicatos distanciaram-se da base e não conseguem desvelar ao trabalhador que ele produz a si mesmo quando produz economicamente; que a luta por emancipação cultural, política e social, tal como diz Gorz, só pode ser adquirida no momento em que os trabalhadores perceberem que a produção de si mesmo é dada pela esfera do trabalho e que a ligação com as demais esferas tem por sentido enriquecer os indivíduos em busca da emancipação. A própria técnica e a necessidade de adaptar-se a esta realidade também fazem os sindicatos ficarem imóveis.

 

Reverter o quadro em relação aos ofícios é missão praticamente impossível, pois como bem ressalta Gorz, “(...) que a racionalidade capitalista é uma racionalidade ilimitada, que inevitavelmente produz efeitos globais contrários aos seus fins, que ela é incapaz de dominar”. (p.34) Neste sentido, para tentar amenizar tais conseqüências e englobar todos os trabalhadores, caberá ao sindicato se unir para buscar corresponder às inúmeras expectativas da base, diante dos diversos apelos oriundos da própria profissão. Caminhar para a construção de um novo sindicato, com novas demandas e novas mentalidades talvez seja a proposta. Afinal, segundo Gorz, estamos em um momento onde os trabalhadores passam a ter novas características e interesses específicos. Ou seja, para compreendermos qual posição deverão ter os sindicatos, precisamos, primeiramente, saber, como nas palavras de Gorz, se “(...)o trabalhador reprofissionalizado que, (...), busca em seu trabalho o sentimento de identidade pessoal e de dignidade social – está mais próximo que os tipos de trabalhadores tradicionais de um possível ideal de humanidade? A tarefa complexa que é lhe requerida pode preencher sua vida e imprimir a ela um sentido sem ao mesmo tempo mutilá-lo? Em uma palavra, como este trabalho é vivido?” (p. 85).

 

E isto só poderá ser feito se os sindicatos se aproximarem da base e compreenderem quais os sentidos que os trabalhadores dão ao seu trabalho e a sua vida; afinal, tal como coloca Samuel Lowrie em um estudo de padrão de vida realizado em 1937, “(...) o bem estar geral só pode concretizar-se se as classes trabalhadoras se virem satisfeitas com as condições de vida que lhe são impostas” (1938, p. 184)

 

Referências bibliográficas

GORZ, André. Metamorfoses do trabalho: Crítica da Razão Econômica. São Paulo: Annablume, 2003

LOWRIE, Samuel. Pesquisa de Padrão de Vida das Famílias dos Operários da Limpeza Pública da Municipalidade de São Paulo. Revista do Arquivo Municipal. São Paulo, v. 51, 1938, p. 183-304

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