Olá, família portuária! Esta semana resolvemos colocar algumas questões sobre a Lei de Modernização dos Portos. Muito se fala sobre ela, mas pouco realmente se sabe dela. Na última pesquisa divulgada pelo Ipat (2007) que fala da relação porto e comunidade, apresenta-se os dados que 52,9% dos entrevistados nos municípios de Santos, Guarujá e Cubatão não conhecem a Lei nº 8.630/93. Neste sentido, vale a pena fazer um breve resgate do que é a modernização e como chegamos a esta lei, que até hoje, passados quase 15 anos, encontra-se em implantação.
Ao falarmos em modernização portuária, a primeira ligação que fazemos é com a privatização. A reforma portuária, porém, vai além da privatização. Segundo a International Transports Workers’ Federation (ITF), a reforma portuária é baseada em 6 conceitos: liberalização, desregulamentação, privatização, competência, globalização e modernização [1]. Os dois primeiros vão ao encontro da idéia de abertura dos portos à economia de mercado. Além disso, a desregulamentação conjuga-se com a privatização no sentido de retirar funções onerosas da mão do Estado, criando novos regulamentos. A estes se juntam o conceito de competência (diminuir custos e aumentar a produtividade) e modernização, que alia a necessidade de inovação tecnológica a investimentos privados. A globalização seria a geradora de todo este processo.
Os modelos de gestão portuária apresentados pela Itf refletem esta comunhão de conceitos:
1 – Porto de “serviço público”: o Estado é o proprietário da infra-estrutura (cais, estradas) e da superestrutura (guindastes, armazéns) e também responsável pelo emprego e organização da mão-de-obra;
2 – Porto “ferramenta”: a administração portuária, a infra-estrutura e os equipamentos continuam nas mãos do Estado. Os serviços de manipulação de cargas passam à iniciativa privada, que se torna responsável pela gestão e contratação da mão-de-obra;
3 – Porto “proprietário”: o Estado, através da autoridade portuária, é o proprietário da infra-estrutura e responsável pela gestão da administração portuária. A superestrutura e a contratação da mão-de-obra passam a ser áreas de interesse privado;
4 – Porto “privatizado totalmente”: Toda a infra-estrutura, superestrutura, gestão portuária e de mão-de-obra é responsabilidade do setor privado.
Como podemos notar, a questão da mão-de-obra está continuamente inserida na discussão da reforma portuária e pode ser considerada seu ponto nevrálgico. Neste caso, o tema da modernização portuária se insere nas discussões sobre as transformações do mundo do trabalho. Isto acontece, porque a modernização portuária é o pico de um processo de transformações tecnológicas, que gera maior rapidez no embarque e desembarque de cargas, uma otimização do trabalho e redução nos custos tanto do valor das cargas, que passam a ser embarcadas em contêineres, como no valor da mão-de-obra, que não é mais tão necessária em um processo informatizado.
Tal como exposto em artigos anteriores publicados nesta coluna, o regime de trabalho no porto era singular, apenas encontrando similar na organização dos trabalhadores da construção civil no início do século XX (SILVA, 2003). Sua característica principal era a restrição do mercado a trabalhadores sindicalizados, ou seja, o sistema de closed-shop. Isto entre os trabalhadores avulsos.
O interessante deste fato é que o sistema de closed-shop era vigente em quase todo mundo. Sendo assim, a reforma portuária sob a ótica do trabalho foi ponto primordial nas discussões sobre a modernização portuária em todo mundo. Em países como a Grã-Bretanha, conhecida por seu forte movimento sindical portuário que desde fins do século XIX já se organizava [2], os britânicos encamparam uma política de privatização que se iniciou no Governo Thatcher. Com foco na passagem dos serviços portuários do setor público para o setor privado, o radicalismo da privatização portuária na Grã-Bretanha está no fato de que até papéis que seriam de autoridade portuária, como regulamentar serviços de segurança e navegação, transferiram-se para o setor privado. A Grã-Bretanha optou pelo tipo de privatização total, na qual todos os serviços portuários, incluindo a administração do porto, passam para a iniciativa privada.
Com relação à mão-de-obra, o caso britânico foi radical. A quebra do monopólio sindical foi dura e arrasadora. Os trabalhadores viram o enfraquecimento de suas entidades sindicais e a perda de seus postos de trabalho. O documentário The Flickering Flame, dirigido por Ken Loach, demonstra bem a luta dos portuários de Liverpool contra o processo de modernização. Tal fato ocorre porque a privatização total do porto permitiu às operadoras atuantes não reconhecerem o papel dos sindicatos enquanto organizadores da mão-de-obra. Sobre este ponto, o Estatuto dos Portos britânico, datado de 1991, não legisla e a saída total do Estado das funções portuárias não permite ao mesmo regular a mão-de-obra.
No Brasil, o processo de reforma portuária assemelhasse muito ao caso britânico. Excluindo as autoridades portuárias, que ainda encontram-se sobre o controle do Estado, todas as demais funções passaram às mãos da iniciativa privada. Os trabalhadores avulsos tiveram sua escala de trabalho transferida dos sindicatos para os Ogmos e os antigos doqueiros passaram da administração portuária para as operadoras portuárias ou para os Ogmos, se tornando trabalhadores avulsos. A iniciativa privada atualmente tem o poder de escolher o perfil do trabalhador e contratá-lo a tempo indeterminado através do Ogmo.
Outro país em que a modernização portuária brasileira espelhou-se foi os Estados Unidos. Conhecidos pelo seu forte movimento sindical, foram entre os americanos que se instituiu e se difundiu o sistema de closed-shop [3].
O complexo portuário norte-americano é o maior do mundo e conta com 185 portos nas costas Norte, Sul,Leste e Oeste, incluindo os portos localizados no Havaí, Alasca, Porto Rico, Guam e Ilhas Virgens. As tradicionais cidades portuárias de São Francisco e Nova Orleans, conhecidas pela coesa organização dos trabalhadores, não figuram mais entre os grandes portos americanos. Este fato é fruto do processo de descentralização da política portuária registrado desde o fim da 2ª Guerra Mundial.
A descentralização fez-se necessária diante de um quadro no qual poucos portos processavam as cargas nacionais e internacionais. Neste sentido, a orientação à descentralização foi investir na construção de portos próximos a centros produtivos e a hidrovias, ferrovias e rodovias, o que resultou em uma diminuição dos gastos e aumento da produtividade, com a rapidez no embarque e desembarque. Este contexto contribuiu para a diminuição do poder dos sindicatos portuários. Aliado a descentralização, o processo de mecanização, que inclui além da introdução dos contêineres, o uso de guindastes, empilhadeiras e pontes rolantes, diminuiu o número de postos de trabalho e a influência das entidades sindicais. Entre os anos de 1974 e 1991 a força de trabalho em todos os portos norte-americanos diminuiu cerca de 60%, totalizando cerca de 40.000 trabalhadores (65.050 em 1974 para 25.981 em 1991). Entre as 4 costas, os portos que mais sentiram os efeitos da mecanização foram os da Costa Oeste e da Costa Norte, que tiveram redução de 68% de sua força de trabalho no período citado. (OLIVEIRA, 2000, p. 135 e 137)
Após a mecanização e o fim do closed-shop, uma nova lógica do trabalho foi imposta aos portuários norte-americanos. Hoje os serviços de carga e descarga são feitos por trabalhadores vinculados a entidades estivadoras. Os avulsos são contratados apenas quando necessários e possuem cadastro nas Autoridades Portuárias. Os acordos coletivos são estabelecidos entre as empresas e os sindicatos. Na costa oeste a entidade sindical representante dos portuários é a International Longshoremen Warehousemen Union (Ilwu) e na costa leste, a International Longshoremen Association (Ila). Os empresários também possuem suas entidades corporativas responsáveis pela negociação com os sindicatos de trabalhadores.
Em relação a modernização portuária norte-americana considerava-se o movimento sindical como principal entrave ao processo. Devido a sua grande força, os sindicatos portuários sempre lutaram pela manutenção do seu monopólio de organização da mão-de-obra. O fim deste gerou corte de um número expressivo de trabalhadores e foi fortemente apoiado pelos empresários do setor.
Se relacionarmos este quadro ao caso brasileiro veremos que as razões para o marco regulatório da modernização portuária se assemelham. No Brasil, assim como nos Estados Unidos, os sindicatos portuários eram considerados o principal obstáculo à modernização e a quebra de seu monopólio sobre a mão-de-obra fazia-se necessário para impulsionar o desenvolvimento dos serviços portuários. Privatizar terminais e instalações não faria sentido se os operadores portuários não tivessem controle sobre a força de trabalho. Este argumento foi utilizado durante as discussões do PL 8 e vão ao encontro dos dados percebidos sobre a modernização portuária norte-americana. Liberar o mercado, abrir a economia não é suficiente para o capital sem o controle da mão-de-obra.
O que podemos perceber é que a Lei nº 8.630/93 teve, de certa forma, influência dos processos de reforma portuária britânica e norte-americana, anteriores a modernização brasileira e mais próximos de nossa realidade, onde a saída dos sindicatos do controle da mão-de-obra foi essencial para que o processo fosse concretizado. No caso brasileiro, este foi um argumento significativo durante a tramitação do projeto de lei e concretizou-se com a criação dos Ogmos, órgãos criados com base na experiência holandesa, que está muito distante da nossa experiência. Ou seja, vemos que, nesta primeira análise, nossa lei não é fruto de um processo de reflexão interna sobre as condições dos portos brasileiros, mas, como quase tudo em nosso país, é um “frankestein” de experiências estrangeiras, que em muitos casos, distorce a problemática e conduz para uma discussão sem solução. Parece-nos que a criação da Secretaria Especial de Portos vem para melhorar esse processo e quem sabe, dar uma cara brasileira a modernização dos portos de nosso país.
Referências bibliográficas
IPAT. O Porto e a Comunidade. Santos/SP: 2007. Disponível em http://www.portouniversidade.com.br
OLIVEIRA, Carlos Tavares. Modernização dos Portos. São Paulo: Aduaneiras, 2000. 3ª ed.
SILVA, Fernando Teixeira da. Operários sem patrões. Os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Campinas, S.P.; Editora da Unicamp, 2003.
[1] International Transports Workers’ Federation. Mejorar las respuestas sindicales a la reforma portuaria. Obtido no site da ITF www.itfglobal.org em 30 de setembro de 2005.
[2] Sobre este assunto ver HOBBSBAWN, Eric. “Sindicatos Nacionais Portuários” In Os Trabalhadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
[3] Paradis (1965) em seu livro sobre a história do movimento trabalhista americano apresenta as categorias que utilizaram deste sistema e como fizeram para implantá-lo.