Sexta, 26 Abril 2024

Olá, família portuária! Hoje nos propomos a apresentar um pouco do debate sociológico sobre cultura do trabalho [i]. O foco será a formação da cultura do trabalho portuário entre os avulsos. Isto, pois, esta é de extrema importância, visto que através dela é que se cultivam e perpetuam os hábitos, costumes, símbolos e experiências profissionais. Escolhemos os avulsos, pois, segundo Fernando Teixeira da Silva (2004, pp. 218-219), a questão da contratação da mão-de-obra é central para a formação da cultura do trabalho portuário. Este é o primeiro de uma série de artigos que terão por objetivo apresentar uma breve análise sobre a cultura do trabalho nas categorias portuárias avulsas.

 

Porém, como se forma esta cultura? A formação de uma cultura acontece através de um sistema de relações. No caso dos trabalhadores portuários avulsos, podemos dizer que ela se constitui através da relação com a entidade sindical. O sentimento de pertencer a uma categoria e, com forte ligação a uma instituição sindical, faz com que estes homens tornem-se pessoas com desejos, vontades, direitos e deveres comuns, conduzidos por algo que, mesmo sendo inconsciente, está dentro de cada um. Neste sentido, podemos falar da existência de um habitus portuário. Códigos de ética e de condutas peculiares aos portuários, que são utilizados em seu cotidiano, nas formas de relacionar-se entre si e com os de fora.

 

Para entendermos um pouco melhor a constituição deste habitus portuário, vamos apresentar de forma breve o conceito conforme exposto por Pierre Bourdieu (1988). Segundo o autor, o habitus é produzido no espaço social com três dimensões fundamentais definidas pelo volume de capital [ii], pela composição de capital e pela trajetória no espaço social (as mudanças no volume e na composição de capital através do tempo). Ter maior capital cultural em relação ao capital econômico e possuir ambos em quantidade elevada indicam que o indivíduo faz uso de práticas que expressam essa composição. Durante a sua vida há a possibilidade de aquisição dos diversos tipos de capital e, conseqüentemente, de mudanças nas práticas sociais. Entretanto, como expõe Bourdieu, estas práticas são inconscientes. Os indivíduos agem, de certa maneira, inconscientemente. O habitus é algo internalizado pelo indivíduo.

 

Neste sentido, podemos pensar em E. P. Thompson, quando este se refere aos valores e costumes de classe.

 

“A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe. Podemos ver uma lógica nas reações de grupos profissionais semelhantes que vivem experiências parecidas, mas não podemos predicar nenhuma lei. A consciência de classe surge da mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma forma”. (THOMPSON, 1987, p. 10)

 

Estes valores são inconscientemente passados pelos membros das classes a seus descendentes e os indivíduos os usam de forma corriqueira, sem pensar que é algo de sua classe ou fração de classe. A experiência de classe se desenvolve como algo inconsciente, enquanto a consciência de classe, como algo consciente. Sendo assim, podemos distinguir consciência de classe e habitus de classe. A primeira pressupõe que os membros da classe agem conscientes de sua condição e suas práticas são orientadas no sentido de agir como classe. Já o segundo diz que os indivíduos realizam suas experiências e práticas de forma coletiva, porém não tem consciência de que suas ações representam práticas comuns ao grupo. Como observou Eder (2002, p. 113), "(...) o habitus de classe pode ser entendido mais como uma expressão da inconsciência coletiva de classe do que como uma expressão da consciência coletiva de classe".

 

Podemos pensar estes conceitos ao olharmos para os portuários avulsos santistas. A constituição do habitus portuário acontece na composição do capital cultural e do capital social obtido através das experiências compartilhadas no âmbito do grupo e na trajetória que o grupo traça. Porém, ela não se faz sozinha. A experiência e a consciência de pertencer a um determinado grupo auxiliam na construção deste habitus. As tradições, costumes e valores são frutos de uma vivência em comum de um grupo social. A consciência de partilhar interesses iguais e identificar-se com estes e com os membros do grupo social é que, para Thompson, forma o grupo. O grupo não existe sem a consciência. Fazer parte de um grupo social é identificar-se com seus valores e seus interesses, consciente de que estes são partilhados pela coletividade. O habitus (costumes, valores, tradições internalizadas pelos membros do grupo) propicia os meios para a consciência e vice-versa.

 

Entre os portuários avulsos santistas desenvolvem-se experiência, consciência e habitus, que juntos criam a cultura do trabalho. A primeira é necessária para o desenvolvimento da segunda, e ambas auxiliarão na criação de um habitus profissional, pois as experiências partilhadas desenvolvem e perpetuam práticas próprias da profissão, que passam, para aqueles que as utilizam, como algo inconsciente. Entretanto, quando estas práticas são utilizadas como forma de resistência da profissão, estes costumes transformam-se efetivamente em cultura do trabalho. Neste sentido, podemos dizer que entre os portuários avulsos santistas o sistema de closed-shop auxiliou na formação desta cultura, pois ajudou a criar e perpetuar sentimentos próprios da profissão e também por ele, tais sentimentos foram utilizados como forma de resistência.

 

Nas próximas semanas falaremos um pouco mais sobre a cultura do trabalho, agora a luz das experiências dos avulsos santistas.

 

Até breve!

 

Referência bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. La Distincion: criterios y bases sociales del gusto. Madrid: Taurus, 1988

EDER, Klaus. A Nova Política de Classes. Bauru, SP: EDUSC, 2002.

SILVA, Fernando Teixeira. “Valentia e Cultura do Trabalho na Estiva de Santos”. In BATALHA, Cláudio H.M.; FORTES, Alexandre e SILVA, Fernando Teixeira da. Cultura de Classes. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004.

THOMPSON, E. P.. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. Vol 1 A árvore da liberdade



[i] Estas reflexões são desdobramento das análises feitas em minha dissertação de mestrado. Cf. DIÉGUEZ, Carla Regina Mota Alonso. De OGMO (Operário Gestor de Mão-de-Obra) para OGMO (Órgão Gestor de Mão-de-Obra): modernização e cultura do trabalho no Porto de Santos. Dissertação (mestrado em Sociologia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

 

[ii] O capital é entendido por Pierre Bourdieu como todo o bem objetivado ou subjetivado, cultural, econômico e social que adquirimos ao longo da vida e que encontram sua expressão em nossas práticas sociais. Podemos dar como exemplo de bem cultural o nível de escolaridade que um indivíduo possui, assim como de bem social as relações que o indivíduo estabelece ao longo da vida.

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