Sexta, 27 Dezembro 2024

As viagens portuárias costumam ter funções narrativas em enredos que contenham naufrágios ou pirataria, por exemplo. São ambientes comuns também das histórias sob o cenário da colonização e imperialismo ocidental nos séculos 18 e 19; são os portos que garantem a realização em imagens da idéia abstrata de império colonial.

 

Mas os portos também são ferramentas narrativas para as viagens de iniciação. Porto Literário resvalou no tema quando deu o exemplo do diário do criador da teoria da adaptação evolutiva, Charles Darwin. Aos 26 anos, ele escreveu sobre sua viagem pela América do Sul, quando contornou o subcontinente pelo extremo da Terra do Fogo durante no início da década de 1830. A experiência fundamental para que desenvolvesse sua teoria nos anos seguintes. De volta da Patagônia, em 1833, já na Argentina, ele percorria o norte do país por terra, cuja descrição no diário é apresentada no texto A rota da Argentina.

I

Impressions of Old Port
Hamburg, de Hugo Kreil

 

Em outra destas histórias a viagem inicial permitiu ao protagonista a lapidação do talento artístico: em 1960, do porto da inglesa Liverpool partem cinco jovens nascidos durante a Segunda Guerra. Eles vão para Hamburgo, onde clubes, bares e casas noturnas contratavam bandas de rock que tocassem para o público cosmopolita que a cidade portuária alemã reunia. O historiador britânico Eric J. Hobsbawm já escreveu como o jazz – gênero norte-americano como o rock'n roll – era popular na Europa do entreguerras, apreciado tanto por jovens alemães quanto por franceses.

 

Os cinco rapazes eram os Beatles. Naqueles dias Ringo Starr era só um conhecido que tocava em outra banda de Liverpool que também chegou a percorrer o circuito noturno de Hamburgo.

 

No começo, John, Paul, George, Stuart Sutcliffe e Pete Best chegavam a tocar mais de oito horas por noite. O episódio é narrado no filme Os cinco de Liverpool, cujo protagonista é Sutcliffe. Para ele, a viagem também marca um momento de transição. Em Hamburgo ele desenvolve suas habilidades como pintor e deixa o grupo para tentar a carreira artística nas artes plásticas e viver com a fotógrafa Astrid Kirchherr.

 

Foi dela a idéia de trocar os topetes Elvis Presley do grupo pelas famosas franjas com que fizeram sucesso. O novo penteado é símbolo do contato dos Beatles com a vanguarda artística européia, uma das fontes das transformações sociais provocadas nos anos 60, das quais o grupo acabou sendo um dos maiores catalisadores.

 

Foi na cidade portuária alemã que eles conheceram também o artista plástico Klaus Voorman, que em 1966 desenharia a capa do álbum Revolver, em que as franjas de John, Paul, George e Ringo estão em primeiro plano e do emaranhado que se forma entre elas surgem novas imagens de cada um.

 

Franjas em profusão no desenho de

Klaus Voorman para o álbum de 1966

 

O Estadão publicou há alguns dias a tradução de uma reportagem da versão on line da revista alemã Spiegel, sobre o lançamento das memórias de Horst Fascher, fundador e co-administrador do Star Club, onde os Beatles se apresentaram em 1962, quando já estavam estabelecidos de novo em Liverpool. O autor da resenha, David Crossland, descreve assim a cidade que aparece no livro, uma pílula mais dourada em relação “às noites de dias duros” dos filhos da classe operária de Liverpool em Hamburgo:

“Para Fascher, o alemão campeão de boxe peso pena de 1959, a época do Star Club foi o apogeu de Hamburgo. O dinheiro e a reputação de cidade de liberdade sexual atraíam grandes espetáculos para o clube noturno no coração do distrito da luz vermelha de St. Pauli, bem perto da famosa Reeperbahn, sua rua principal. Os Beatles se apresentaram lá em 1962. Chuck Berry também, assim como Jerry Lee Lewis, Bill Haley, Little Richard, Ray Charles, Cream, Small Faces e muitos outros.

 

O grupo acaba deportado de volta a Inglaterra. Primeiro George Harrison, por ser menor de 18 anos e estar trabalhando. Depois McCartney e Pete Best por iniciarem um incêndio. O grupo voltou para a Alemanha em 1961, após o aniversário de Harrison. Foi nessa segunda visita que Stucliffe deixou o grupo. Esse fato é importantíssimo também para a sonoridade do grupo. Com a saída de Stu, Paul assume o baixo e o grupo passa de três para dois guitarristas, John e George, além do baterista Pete Best, substituído por Ringo Starr às vésperas da gravação de Love me do (1963) e o início do estrelato, que é outra história, outra aventura.

 

II

Essas relações dos Beatles com a vanguarda são uma das ocorrências propiciadas pelo cosmopolitismo da cidade alemã, um lugar em que um jovem com formação artística de Stu pudesse desenvolver seus talentos e conviver com outros artistas. Ele, John Lennon e Paul McCartney fizeram cursos de arte, assim como os guitarristas Keith Richards, dos Rolling Stones, Eric Clapton e Jimy Page, um dos sucessores de Clapton nos Yardbirds e posteriormente fundador do Led Zeppelin.

 

Antes da fama, porém, como mostram as passagens mais saborosas do filme, eles ralavam em torno de oito horas por noite, muitas vezes movidos à rebite para agüentar o tranco.

 

Ao levar Sutcliffe para Astrid, para as artes plásticas e ao seu destino, a viagem de iniciação dos Beatles foi a responsável pelo formato musical com que a banda pôde desenvolver seu potencial artístico em meio às condições culturais permitidas pelo contexto de sua época.

 

À frente do baixo, Paul McCartney compôs e desenvolveu harmonias em boa parte responsáveis pela evolução musical do grupo. Embora o baixo fique geralmente em segundo plano, talvez valha lembrar o andamento da canção All my loving, aquela que em português começa com “Feche os olhos e sinta...”.

 

A partir de Rubber Soul (1965), a evolução já era marcante e a inventividade aflora em canções como Nowhere man (Lennon-McCartney) e If I needed someone (Harrison), sobre a qual o maestro Gilberto Mendes fez o seguinte comentário ao ser apresentado à musica pelo repórter Eugênio Martins Jr, publicada no Jornal da Orla:

 

“Eu fui apresentado aos Beatles pelo meu filho de dez anos, que comprou na época o compacto de I Wanna Hold Your Hand. É uma das melhores épocas da música popular. As guitarras eram instrumentos de caminhoneiros americanos e os timbres que eles tiravam desses instrumentos horrorosos eram impressionantes. O Paul McCartney é responsável por todas aquelas harmonias.”

 

Ninguém menos que Gilberto Mendes, criador do Festival de Música Nova, para atestar a inventividade do grupo, que chegaria ainda à beleza de Revolver, ao experimentalismo de Magical Mistery Tour e Sargent Pepper´s Lonely Heart Club Band, ambos de 1967, à música concreta Revolution 9, faixa do álbum branco de 1968, composta por John Lennon a partir da gravação de sons do cotidiano, como trechos de conversas, barulhos do trânsito, rádios e  efeitos sonoros.

 

Antes de sua dissolução, em março 1970, o grupo ainda lançaria Abbey Road (1969) e Lei it be (1970). O primeiro, ainda que já distante da psicodelia, mantém o pé na inventividade e mostra a banda no auge de sua capacidade técnica. O segundo, realizado após as gravações entre 66 e 68, mostra a banda de volta ao rock-n-roll básico do início e às baladas. Todos eles marcos da música contemporânea que tiveram a colaboração das viagens portuárias para o seu desenvolvimento.

 

Referências

 

Livros:

Horst Fascher. Let the good times roll, a reportagem não informa previsão de tradução para o português.
Eric J. Hobsbawm. História social do jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

Eric J. Hobsbawm. Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

Filme:

Backbeat: Os cinco de Liverpool

Título Original: Backbeat
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 100 minutos
Ano de Lançamento (Inglaterra): 1993
Direção: Iain Softley
Roteiro: Iain Softley, Michael Thomas e Stephen Ward


Com:
Stephen Dorff (Stuart Sutcliffe)
Ian Hart (John Lennon)
Gary Bakewell (Paul McCartney)
Chris O'Neill (George Harrison)
Scot Williams (Pete Best)
Paul Duckworth (Ringo Starr)
Kai Wiesinger (Klaus Voormann)
Sheryl Lee (Astrid Kirchherr)

Produção: Finola Dwyer e Stephen Wooley
Música: Don Was
Fotografia: Ian Wilson
Desenho de Produção: Joseph Bennett
Direção de Arte: Michael Carlin e Joseph Plagge
Figurino: Sheena Napier
Edição: Martin Walsh
Estúdio: Channel Four Films / Scala Productions / Royal / PolyGram Filmed Entertainment / Fortbeam
Distribuição: Gramercy Pictures
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