Sexta, 27 Dezembro 2024

Hoje, Porto Literário faz uma pequena salada de artefatos literários. Retomo um romance que já apareceu bem por aqui; releio três poemas e apresento um ensaio de viagem. Têm em comum a presença de Santos como escala de viagem e é isso que os une. O que os diferencia são os percursos.

 

O ensaio é A Raça Cósmica (1925), do intelectual mexicano José Vasconcelos. Em 1922, como ministro da Educação do México, percorreu a América do Sul com uma comitiva governamental. No Brasil, acompanhou as festas do centenário da Independência no Rio de Janeiro, participou de uma atividade acadêmica em uma universidade de São Paulo e, em Santos, acompanhou um pregão da Bolsa do Café e foi à praia. A dica do trecho que descreve sua passagem por Santos é do poeta Ademir Demarchi, editor da Revista Babel, a quem agradeço a gentileza de ter digitalizado e me enviado o material.

 

I

No romance A Carne há uma passagem em que o protagonista Manuel Barbosa, herdeiro da fazenda de café da família, vem de trem a Santos para acompanhar de perto as conseqüências da quebra de uma casa comissária. O caminho que faz Barbosa é do interior ao porto, completando o circuito da cadeia produtiva do café: plantação, distribuição e exportação, atividades representadas no eixo ferroviário pelas cidades de Campinas, São Paulo e Santos.

Em outras palavras, ele vem a Santos para garantir que o café, pelo menos o seu, possa continuar embarcando rumo aos consumidores europeus e norte-americanos com o devido lucro. Ele mesmo, apesar de já ter ido conhecer a Europa, teria que voltar à fazenda para que se desse o desfecho da trama amorosa do romance naturalista de 1888.

 

A perspectiva de Manuel Barbosa é oposta à dos narradores que chegam em Santos nos poemas de Pablo Neruda, Elizabeth Bishop e Blaise Cendrars. Os três chegam ao cais e embarcam para o interior ou para São Paulo. Nesse caso, os importadores de café Europa (Cendrars) e América do Norte (Bishop) tornam-se exportadores de autores. Os dois, ao lado do Chile (Neruda, o que demonstra uma relação interna no continente sul-americano), traçam um mapa de intercâmbio cultural, ainda que tenham vindo ao Brasil em épocas e por motivos diferentes.

 

II

Já a passagem de Vasconcelos por Santos, apesar da origem internacional, é semelhante à de Manuel Barbosa – feita a devida ressalva de que um era uma pessoa real e outro uma personagem: o ministro mexicano vem de trem para Santos, passa um dia e volta de carro para São Paulo.

 

Nas Notas de viagens à América do Sul, volume incluído em algumas das edições de A Raça Cósmica, Vasconcelos diz que assim que chega em Santos se dirige à Bolsa do Café, onde preside o pregão do produto, cujas altas e baixas são o “termômetro da prosperidade da região” – lembremos, novamente, de Manuel Barbosa. Dali ele foi ao novo prédio da bolsa, o atual Museu do Café, que estava em conclusão (ele seria inaugurado ainda em 1922).

 

Vasconcelos depois percorre as praias de carro, notando banhistas, excursionistas de São Paulo e outros automóveis que circulavam pelo pedaço. Depois se dirige ao hotel “branco e de vários pisos, com varandas e jardins e uma grande esplanada risonha”, onde comeu uma “maravilhosa” torta de grão-de-bico e uma feijoada “de luxo” e repara nas mulheres à mesa no restaurante.

 

À tarde, ele volta à praia, desta vez, a pé, para contemplação, onde registra uma imagem do que viria a ser A Raça Cósmica:

 

“Sem recordar coisa alguma, sem pensar em nada entramos no ambiente, nos permeamos nele, nos inundamos em seu deleite de harmonias. Nos sentimos como os magos criadores da luz. A própria Divindade nos contagia com sua obra. Naquela ocasião parecia que tudo era de cristal. (...) Começavam a chegar à praia as pessoas, desfilaram, com suas tentações fugazes, mulheres bonitas semi-nuas; os corpos tomam sol, depois a água as unta de sensualidade; estalaram risadas e gritos.”

 

Depois, ao cair da tarde, ele toma a estrada para o planalto.

 

Ele não usa o porto.

 

Arrisco uma hipótese: pode-se dizer que A Raça Cósmica é fruto das viagens de Vasconcelos. Em 1922, ele passaria também por Uruguai, Chile e Argentina, onde, em Buenos Aires, esteve presente à cerimônia de transmissão de poderes do presidente Yrigoyen a seu sucessor Marcelo de Alvear. Já havia conhecido ou conheceria outros vizinhos em ocasiões diversas.

 

Em sua obra, Vasconcelos prediz a chegada de uma nova etapa na humanidade, tendo à frente a raça cósmica, os descendentes dos latino-americanos, fadados ao sucesso por sua mestiçagem, por sua mistura social e pela idéia geral de hibridização. Ainda que o caldo tenha sido criado por um ato de violência – a conquista colonizadora – sua qualidade garantiria a ascensão da nova raça.

 

Ele exclui da novidade os Estados Unidos da América do Norte. Lá, a colonização de povoamento levou o país à beira do extermínio total dos nativos; e a segregação entre negros e brancos também contribuiu para menores índices de mestiçagem. Ele traça os Estados Unidos como uma continuação da Inglaterra, fora então da nação cósmica, formada do México ao norte à Patagônia no sul e marcada pela civilização da Amazônia, fonte de recursos e energia para o mundo. Para ele, era só uma questão de tempo.

 

Ao fazer seu percurso de visitas e viagens, Vasconcelos traçava um mapa dessa nova civilização, em que Santos, apesar de poder manter sua característica de corredor internacional, naquele momento de realização da idéia, é mais uma fronteira, um limite para a contenção de tal empreitada multinacional.

 

Por isso ele aqui vem e volta, mas pelo porto não passa.

 

Referência:

José Vasconcelos. La Raza Cósmica: Misión de la raza iberoamericana (acompanhado por Nota de viagens pela América do Sul). Paris, Madri, Lisboa; Agencia Mundial de Librería, 1925.

Leia o ensaio aqui, no original em espanhol: http://filosofia.org/aut/001/razacos.htm
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