Sexta, 27 Dezembro 2024

O valor de uma obra de arte está em seu próprio conteúdo. Para muitos, isso é motivo suficiente para torcer o nariz para a crítica. Mas mesmo estas pessoas não podem negar que, se a crítica não afeta o desempenho da obra em seus apreciadores (o que é muito controverso), pelo menos mostra um pouco (ou muito) do momento intelectual em que foi escrita.

 

Outra utilidade dos textos críticos é que por meio deles se pode fazer uma história da recepção de uma obra de arte, reconstituindo assim os efeitos que determinado livro, pintura ou filme causa em seus públicos. Neste Porto Literário veremos um pouco de como se deu a recepção do romance de identidade portuária Navios Iluminados, de Ranulpho Prata, obra que mostra o cotidiano do bairro portuário de Santos e que é figurinha carimbada deste espaço.

 

I

A primeira edição do romance é de 1937, da Livraria José Olympio, e, em 21 de dezembro desse ano, surge a primeira nota sobre a obra, no diário A Gazeta, de São Paulo. O autor da pequena notícia identifica o romance como obra do “laureado autor de O Lírio na Torrente”, obra imediatamente anterior, de 1925, e adverte seus leitores:

 

“A rápida leitura que fizemos de Navios Iluminados não nos permitiu ainda fixar um juízo definitivo acerca do novo livro do sr. Ranulpho Prata; mas já podemos adiantar que se trata de um belo romance”. A indicação da data da resenha vem de Ranulpho Prata, quase esquecido, perfil do autor escrito pelo Monsenhor Primo Vieira, ex-professor da Universidade Católica de Santos, obra que listou uma série de resenhas e críticas sobre o autor.

 

A partir do início de 1938, novas análises são publicadas. Em O Diário, daqui de Santos, Antonio de Villaverde escreve em 06 de janeiro sobre a “enorme” distância que separa Navios Iluminados de O Lírio na Torrente. E não é só a distância no tempo. Para Villaverde, os personagens da ficção de 1925 são delineados como esboços, ainda que “liricamente”, enquanto o romance de 1937 traz caracteres e tipos de “feição natural”, o que, “além de os humanizar, mostra-os na nudez dos seus instintos”.

 

O resenhista traça com cores fortes as características do protagonista, José Severino de Jesus, migrante do sertão da Bahia que tenta ganhar a vida como estivador no cais de Santos:

 

“Severino – razão de ser do livro – é o continuado sofrimento da besta de carga que a máquina (...) vai, aos poucos, substituindo”.

 

Mais à frente, o crítico utiliza o termo “kodaquizar” para dizer que Prata fez em seu romance um retrato da dura vida dos trabalhadores das Docas, “em que a riqueza dos outros é transportada em ombros humanos”, ombros daqueles que “nasceram com a sorte torcida” (a expressão é do próprio Prata).

 

Dois dias antes, em 04 de janeiro, A Tribuna trazia um texto assinado por Álvaro Augusto Lopes que destaca do livro a “variedade caleidoscópica de episódios e indivíduos, (...) toda uma população cosmopolita e sofredora” que vive no Macuco, o bairro portuário da cidade. Lopes avalia que a obra de Prata passa a ocupar um espaço ainda não preenchido pela literatura local:

 

“Navios Iluminados é bem o romance da pobreza de Santos, que ainda faltava escrever-se. Ranulpho Prata, pelo conteúdo humano que neste livro condensou, afirma-se, mais uma vez, com um dos mais brilhantes romancistas da geração contemporânea”.

 

Pela mesma vereda vai o texto de Rubens Amaral para a Folha da Manhã, de São Paulo. Amaral inicia sua resenha, datada de 13 de março, que a característica de porto permitiu a Santos ter visto a concretização de talentos como Frei Gaspar, os Andradas, Vicente de Carvalho, Alberto Sousa, Martins Fontes, Reynaldo Porchat, Afonso Schmidt, Ribeiro Couto, mas havia ainda a falta de um grande romance que registrasse a cidade pelas lentes (“kodaquizando”, novamente) da literatura.

 

“Praia e pescadores tiveram quem escrevesse seu romance e seus contos, quem cantasse as suas dores e as suas glórias. Por dentro das praias e diferentes dos pescadores, há o porto, com os seus estivadores e carroceiros, gente humilde perante a Fortuna, que a esqueceu como a esqueceu a Literatura.

(...)

Apareceu agora esse romancista, no sr. Ranulpho Prata, autor de Navios Iluminados, que é história daquela gente do cais em sua mistura com a de Vila Macuco, à margem do giro do café, do movimento de importação, do gozo das praias com os seus balneários e os seus cassinos”.

 

Com Amaral parece concordar Jair Silva, que fez a crítica do romance para a Folha de Minas, em 25 de março:

 

“Em Navios Iluminados o autor realmente diz muita coisa da vida do mar. Mais, talvez, da existência dos homens obscuros que trabalham no porto”.

 

Em A Gazeta, já em 25 de setembro, desta vez em um texto mais extenso, o resenhista, identificado pelas iniciais B.B., considera Navios Iluminados a melhor obra de Prata, “cujo estilo escorreito (de bom aspecto), se não possui muita arte, também não incide nos efeitos de brilho fácil”. B.B. considera escrita de Prata equilibrada e bem legível, o que não é lá um elogio.

 

“O sr. Ranulpho Prata consegue nos dar uma certa impressão de ‘força’ na simplicidade da narrativa. A vida dos taifeiros de Santos é descrita com vigor plástico, num realismo absolutamente despido de artifícios. E o livro comove pela objetividade e a boa fé, pois jogando com elementos muito explorado por certos romancistas modernos, o autor teve a felicidade de não fazer ‘romance proletário’”.

 

II

A afirmação acima abre espaço para irmos além da recepção da obra e avançarmos sobre a história intelectual do período, cuja literatura carregava como uma de suas marcas a denúncia social. Percebe-se também nos resenhistas acima alguns indícios de seus preceitos estéticos.

 

Nesse período, a literatura modernista iniciava sua segunda década na promoção de transformações na linguagem literária, trazendo para a ficção a fala coloquial e outros motivos que, para os modernistas, iriam arejar a renovar as letras nacionais (um exemplo desse embate é o artigo da revista Klaxon em que Mário de Andrade ataca a poesia parnasiana de Martins Fontes).

 

Villaverde, Jair Silva e B.B. aproveitam o “estilo escorreito” de Prata para reagir ao impulso literário modernista. B.B. acredita que os “equilibrados” livros de Prata, apesar de não se arrojarem à descoberta de “novos horizontes”, fogem dos “excessos e arbitrariedades tão freqüentes” daquele momento.

 

Para o crítico mineiro, o uso do baixo vocabulário estava tão comum que até ironizou: “Apesar da falta de imoralidade, a leitura (de Navios Iluminados) não deixa, nem um instante, de ser agradável”.

 

Para terminar, ficamos como Villaverde concluiu sua crítica, direto e sem ironias:

 

“Afinal, um livro sincero e bem escrito, o que é notável nos dias de hoje, em que a mentalidade se encarreira para uma arte feita de palavrões, que pode ser o regalo de muitos, mas, positivamente, fere a estesia (sentimento do belo) dos que, por infelicidade, ainda sabem ler”.

 

III

No perfil traçado por Primo Vieira, que teve acesso aos arquivos do escritor, podemos perceber como a obra de Prata foi difundida por todo o país através da imprensa. Sobre Navios Iluminados, ele registrou, além dos acima descritos, artigos em jornais tais como O Diário, de Belo Horizonte; Vanguarda; Correio Paulistano; Diário da Noite; A Tarde; A Cidade de Ribeirão Preto; A República, de Natal; O Globo; Diário da Tarde; ou revistas como a Flamma, de Santos, ou a Revista da Academia Sergipana de Letras.

 

Referências:

 

Monsenhor Primo Vieira. Ranulpho Prata, quase esquecido. In: Revista da Universidade Católica de São Paulo. Volume XXIII – Dezembro de 1961 – Março de 1962 – Fascículos 40-41. Páginas 21-49.

 

Há cópias do texto na biblioteca da Academia Santista de Letras ([email protected]) e no Centro de Documentação da Baixada Santista, da Unisantos (www.unisantos.br)

 

Cópias dos jornais que trazem os textos de Villaverde, Jair Silva e B.B. estão em:

 

Sonia Maria Ramos Pestana. Santos na obra “Navios Iluminados” de Ranulpho Prata. Monografia de pós-graduação lato-sensu, com orientação da professora Maria Aparecida Franco Pereira. Santos: Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Católica de Santos.

 

O texto de Álvaro Augusto Lopes foi consultado no arquivo de A Tribuna

 

Coluna do Porto Literário sobre a crítica de Mário de Andrade a Martins Fontes:

http://www.portogente.com.br/texto.php?cod=3390&sec=83
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