Em “O Terror Portuário”, vimos como em duas ficções européias do final do século XIX os portos dos países periféricos são tratados como a origem do mal que acomete cidades ícones da modernidade, Paris (“O Horla”, de Guy de Maupassant) e Londres (“Drácula, de Bram Stocker).
As duas histórias são publicadas na fase final do que o historiador britânico Eric Hobsbawn cunhou de “A Era dos Impérios” e que iria até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, quando começa a “Era dos Extremos”. Nesse momento histórico, em que a modernidade técnica desperta todo seu potencial destrutivo, o mal não pode ser mais creditado a qualquer país afastado, e sim ao coração da própria Europa. A Belle Époque chega ao fim e os portos da ficção indicam agora a saída da continente.
É o caso de Eveline, conto de James Joyce publicado em “Dublinenses” (1914): a personagem que dá nome à história passa os últimos momentos antes do embarque refletindo sobre o convite que recebe do amante para deixar a empobrecida Dublin, na Irlanda, deixar o pai, os irmãos e acompanhá-lo em uma nova vida em Buenos Aires, na Argentina.
Eveline, então com 19 anos, se lembra de vizinhos da infância que também já deixaram o país, alguns voltaram para Londres, outros partiram para Melbourne, na Austrália. O navio noturno que deixará Dublin representa para a moça uma outra vida, em que seria esposa de um afável homem de coração aberto e onde teria um lar esperando por ela. Eveline então lembra as descrições que Frank, o namorado marinheiro, fazia da vida aventureira além-mar. A tradução, a cargo deste colunista, deve ser desculpada:
“Ele contava histórias de países distantes. Tinha começado como garoto de serviços a um pound por mês em um navio da Allan Line para o Canadá. Disse a ela os nomes dos navios em que esteve e os nomes dos diferentes serviços a bordo. Ele navegou pelo Estreito de Magalhães e contou a ela histórias dos terríveis moradores da Patagônia. Ele fincou seus pés em Buenos Aires, disse, e estava no velho país apenas de férias”.
Apesar do terrível povo da Patagônia, as cidades do Novo Mundo são agora um local para onde se pode levar uma mulher para casar e constituir um lar. Na cena final, no terminal de embarque de North Wall, lotado de soldados com suas bagagens (estamos em 1914), Eveline, porém, apesar do desejo por uma nova vida, não consegue deixar a cidade natal, em uma cena marcada pela nostalgia da partida. A decisão é tomada no momento em que deveria entrar no navio, como se “todos os mares do mundo desmoronassem sobre seu coração”.
Outra ficção que traz o porto como refúgio é a peça teatral “Estado de Sítio”, de Albert Camus, em que o caminho para o mar é a única forma de fugir da ditadura implantada pelo personagem Peste e sua secretária em Cádiz, Espanha, uma alegoria das ditaduras totalitárias que surgiram no entreguerras (nazismo na Alemanha, fascismo na Itália e franquismo na Espanha). A peça, uma variação do romance “A peste” (1947), estreou em Paris em outubro de 1948. O coro registra a chegada da peste:
“Assinaste sobre a areia.
Escreveste sobre o mar.
Não resta senão a dor.”
O início da epidemia é uma boa desculpa para as autoridades proibirem as reuniões públicas e o divertimento. Quando a Peste assume o comando da cidade, a situação se agrava, como resume esta apresentação da edição da Abril Cultural:
“Encerrada em seus próprios muros, emudecida por um ‘tampão embebido em vinagre’, Cádiz é oficialmente declarada em estado de sítio. ‘A ridícula angústia da felicidade’ é proibida, assim como ‘o rosto estúpido dos apaixonados, a contemplação estúpida das paisagens’. Os valores mais caros são proscritos. Não deverá existir amor. E ninguém mais morrerá ao acaso, por emoção ou descuido: a morte doravante será racional e burocratizada, obedecendo à rígida ordem de uma lista cuidadosamente elaborada”.
A primeira indicação de que o mar poderia combater a contaminação surge na página 42, quando o prefeito de Cádiz tenta tranqüilizar os habitantes ao falar na possibilidade de que o “vento do mar se levante, para que a peste recue”.O coro descreve a epidemia:
“Brumas terríveis começam a avolumar-se nos quatro cantos da cidade; dissipam, pouco a pouco, o perfume dos frutos e das rosas; empanam a glória da estação: sufocam o júbilo do estio. Ah! Cádiz! Cidade marítima! Ainda ontem, e por cima do estreito, o vento do deserto, mais espesso, de sua passagem pelos jardins africanos, vinha enlanguecer nossas filhas. Mas o vento cessou – e só ele poderia purificar a cidade”.
E, em seguida, mostra o caminho da salvação:
“Ah! Corramos para aquelas que ainda se abrem. Somos filhos do mar. É lá, lá longe, que precisamos chegar. Ao país sem muralhas e sem portas. Às praias virgens, onde a areia tem o frescor dos lábios e onde o olhar alcança tão longe, que se fatiga. Corramos ao encontro do vento! Ao mar! O mar, enfim, o mar livre, a água que lava, o vento que liberta!”
As coisas começam a mudar quando o barqueiro que abastece a cidade revela ao herói da trama, Diogo, que famílias se refugiam da peste em navios ancorados ao longo da costa. Assim, de voz em voz, a resistência chega aos habitantes de Cádiz, que se abrem para o vento do mar, metáfora de uma revolta contra a peste opressora.
Nas duas ficções, o mar representa a passagem para uma nova vida. Pelo porto se começa de novo.
Referências:
CAMUS, Albert. Estado de Sítio. Traduzido por Maria Jacintha e Antonio Quadros. Abril Cultural, São Paulo, 1979.
JOYCE, James. Dubliners. Wordsworth Editions Limited, Hertfordshire (Inglaterra), 2001.