Sexta, 19 Abril 2024

O valor de uma obra literária como documento histórico é tanto maior quanto for a distinção dos tempos que a compõem: o tempo da narrativa (incluídos aí os flashbacks e outros procedimentos de saltos temporais) e o tempo da escrita (o tempo do autor). Conforme a obra atinge as gerações acumulam-se também os tempos da leitura. Esses tempos se entrelaçam e até muitas vezes são coincidentes, mas oferecem lentes através das quais se visualizam perspectivas próprias de análise.

 

Mostra-se aqui como um romance, no caso “Barcelona Brasileira”, de Adelto Gonçalves, comporta e organiza esses tempos. A periodização da trama se estende entre 1917 e o início da década de 20 na cidade de Santos, com alguns flashbacks. Esse é o tempo da narrativa e aponta para um painel histórico daquele período de consolidação das intervenções urbanas, das greves de inclinações anarquistas, de bailes em cassinos e de poetas parnasianos (ver coluna em que o livro é apresentado).

 

Em entrevista à coluna Porto Literário, o autor contou um pouco sobre a época em que escreveu o romance, no início da década de 1980: “Em 1981 fui com um fotógrafo para a Espanha para realizar uma série de reportagens de turismo sobre as cidades que seriam as sedes dos jogos da Copa do Mundo (disputada em 1982) para A Tribuna. Em Barcelona, conheci edições da revista anarquista ‘El viejo topo’ e comprei livros de literatura anarquista como ‘El corto verón de la anarquía’, as memórias de um anarquista da guerra civil espanhola”.

 

O contato com essas obras uniu-se ao interesse prévio que o autor nutria pelo tema. No início dos anos 80 o país passava pela fase final do regime militar; as forças políticas se organizavam em partidos e as discussões ideológicas retomavam seu lugar na vida nacional: a rixa histórica entre anarquismo e comunismo ainda rendia assunto, como mostra o próprio romance nas divisões dos sindicalistas entre libertários e autoritários.

 

O tempo do autor não é só dele, é de todos os seus contemporâneos: Adelto Gonçalves lembra que na época outras duas obras mapeavam esse terreno, só que fora da ficção: a dissertação do mestrado em História de Maria Lucia Caira Gitahy, apresentada em 1983 e que deu origem ao livro “Ventos do Mar. Trabalhadores do Porto, Movimento Operário e Cultura Urbana em Santos, 1889-1914”, e “Santos Libertária. Imprensa Anarquista e Movimento Operário na ‘Barcelona Brasileira’”, Trabalho de Conclusão de Curso do jornalista Paulo Matos, também de 1983.

 

Adelto Gonçalves também revela uma passagem de “Barcelona Brasileira” que fala mais de época em que escreveu do que da época da ação dos personagens: a inclusão do Café Paulista na trama, como lugar onde o personagem principal, o Poeta, reúne-se com outros autores em uma das mesas do fundo de onde todos os demais clientes do bar podem ser observados. “Naquela época o Café Paulista ainda não existia. Eu o incluí na trama porque a história da mesa dos poetas ocorreu realmente, só que os poetas eram o Roldão Mendes Rosa e o Narciso de Andrade, que lá se encontravam nos anos 70”.

 

Já o tempo da leitura, nesta obra que ficou quase duas décadas na gaveta e só foi publicada no Brasil em 2002, difere dos dois primeiros. É o deste início do século XXI, em que a queda do Muro de Berlim afastou a opção comunista do horizonte histórico do Ocidente e garantiu as bases para a solidificação hegemônica do capitalismo financeiro, ou neoliberal. Ao mesmo tempo, os movimentos antiglobalização tomam formas e se reproduzem em uma base muito próxima ao anarquismo.

 

A análise é do antropólogo David Graeber, em trecho do artigo publicado no caderno Mais, da Folha de S. Paulo, agora em 14 de agosto: “... o movimento por justiça global foi iniciado principalmente por grupos que rejeitavam explicitamente a idéia de tomar o governo, e em vez disso se apoiavam em idéias desenvolvidas na tradição anarquista – auto-organização, associação voluntária, ajuda mútua –, mesmo que apenas raramente usassem a palavra ‘anarquista’ (a preferência era geralmente por: horizontalismo, autonomia, associativismo, autogestão, zapatismo... Mas, como diria a maioria dos anarquistas, os rótulos não importam)”.

 

Essa descrição de um movimento da atualidade se aproxima bastante do que fazem e pensam os personagens de “Barcelona Brasileira” ou do que foi registrado nas obras de Matos e Gitahy.

 

Referências:

GONÇALVES, Adelto. Barcelona Brasileira. São Paulo, Publisher Brasil, 2002

 

GITAHY, Maria Lucia Caira. Ventos do Mar: Trabalhadores do Porto, Movimento Operário e Cultura Urbana em Santos: 1889-1914. Unesp/ Prefeitura Municipal de Santos. São Paulo; 1992.

 

MATOS, Paulo. Santos Libertária. Imprensa Anarquista e Movimento Operário na “Barcelona Brasileira”. 1880/1920. Trabalho de Conclusão de Curso. Faculdade de Comunicação Social da Universidade Católica de Santos, 1983.

 

GRAEBER, David. “O carnaval está em marcha”. Mais, pp. 5-6. Folha de S. Paulo, 14 de agosto de 2005.

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