Quinta, 26 Dezembro 2024

Na coluna anterior comentava-se o conteúdo de uma carta de Manuel Barbosa, personagem de "A carne", romance de Júlio Ribeiro escrito na segunda metade do século XIX, em 1888. Barbosa é um homem de seu tempo, um entusiasta dos avanços científicos e técnicos que explora, colhe e cataloga espécimes da fauna e da flora da fazenda da família no interior da província de São Paulo; é acionista da São Paulo Railway Co., companhia que explorava o percurso de trem de Jundiaí a Santos.

 

Sua formação é européia, de um naturalismo e positivismo importados pelos intelectuais do período. O próprio Júlio Ribeiro é exemplo: seu romance é dedicado ao "príncipe do naturismo", o escritor francês Emile Zola. Nesse momento surgem projetos de definição da identidade nacional, principalmente quando se fortalecem os movimentos republicano e abolicionista. O Brasil é representado por determinismos geográficos e históricos. Em linhas gerais: uma nação de natureza exuberante que deve se civilizar. A síntese literária destes desencontros e contradições está em "Os Sertões", de Euclides da Cunha, publicado nos primeiros anos do século XX.

 

Na escala local, a carta de Barbosa reflete essa visão sobre Santos. Mesmo escrevendo para Lenita, sua amada, o tom é científico: "minha prezada companheira de estudos". Ele explica a cidade a partir da descrição geológica do litoral paulista. Logo no primeiro parágrafo, ele aponta não haver “dados aceitáveis” para explicar por qual motivo Martim Afonso preferiu esta terra “cálida, úmida, sufocante” ao Rio de Janeiro para dar início à colonização do Brasil.

 

Na cidade em pleno verão, ele a compara com o Senegal: “O Senegal é mais quente, valha a verdade, mas não é tão abafado. Lá respira-se fogo, mas respira-se. Aqui não se respira nem fogo, nem coisa nenhuma”. O ar de Santos é pesado e oleoso e, quando sopra o Vento Noroeste, que ele chama “vendaval-peçonha”, o clima é de um “tufão dentro de um forno”, um “ar irrespirável e morto” que atrapalha as digestões e que dá vontade de chorar. Em assuntos de calidez, para o missivista, Santos só perde para Senegal, Abissínia, Calcutá e Jamaica.

 

Os frutos do mar recebem destaque positivo. Os mariscos são esplêndidos e as pescadas amarelas, uma delícia. Barbosa considera a ostra de Santos, tenra e delicada, melhor do que as que já comeu na França, justamente porque uma moléstia lhe garante uma cor esverdeada que dá um sabor apreciado pelos “finos gourmets”.

 

Depois de um breve parágrafo dedicado à descrição da população local, ele anuncia à destinatária um “pouco de estudo”, um elenco de informações sobre a formação do litoral paulista: os recifes, as ilhas, profundidades e a sedimentação dos terrenos que formam o trecho, entre a serra e o mar: “A planície santista, bem como toda a planície da costa brasílica, é uma conquista contínua ainda, continuará indefinidamente, de dia, de noite, a todas as horas, a todos os momentos; lenta, imperceptível mas intérmina, incessante; não há tréguas na luta entre a terra e o mar”.

 

Esse embate entre os elementos, anterior à presença humana, é um dos temas de “Cais”, livro de poemas de Alberto Martins, obra bem mais recente, de 2002. O poema “Ponta da Juréia” refaz esse encontro: “De um lado – a pedra – de outro o martelo do mar” Nem é preciso muita imaginação para aplicar a imagem de “martelo do mar” aos recentes estragos causados pela ressaca na Ponta da Praia.

 

A ação do homem é limitada pela natureza. Basta conferir “Barra”, um aviso sobre os perigos das travessias nos estuários tomados por navios indo e vindo: “Por aqui ainda se morre de simples destempero basta ignorar as lajes o vento basta romper a barra em hora estreita: vais pescar em águas turvas ao som de nenhuma sereia”.

 

Ao folhearmos “Cais” só nos falta sentir o cheiro da maresia. Porque o resto está todo lá: a areia, as conchas, os horizontes no oceano, a cerração da serra, os cardumes silenciosos, o mangue e o estuário por onde chegam os navios que cortam a barra modificando continuamente a paisagem e embaralhando a percepção, como lemos em “Noturno da Baixada”: “Triste cidade litorânea! Meus olhos mal te distinguem do mar da terra da lama”

 

Os poemas de “Cais” mostram uma atmosfera de desintegração das formas, tomadas pela neblina, corroídas pela ferrugem ou embaçadas pelo calor úmido. A descrição de tudo isso só cabe em um idioma próprio, a “língua-mangue”, língua-mãe de uma baixada dividida entre terra e água.

 

Os 114 anos que separam uma obra da outra formam o período em que o pensamento moderno atingiu seu apogeu. A primeira foi escrita quando se pensava que o desafio era vencer a natureza. A segunda, uma obra já do século XXI, quando talvez o desafio seja sobreviver ao colapso ambiental planetário.
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