Sábado, 28 Dezembro 2024

“Santos agora tem certidão de nascimento e atestado de paternidade”. Ouvi essa frase do escritor Flávio Viegas Amoreira em conversa sobre Braz Cubas: homenagem a uma vida, do historiador Waldir Rueda, lançado em 25 de janeiro no Centro Português.

 

Flávio, autor também do texto da quarta capa da biografia do fundador do povoado que deu origem a Santos, ao usar termos como certidão e atestado, nos leva aos ouvidos uma referência à profusão de documentos que Rueda pesquisou e reuniu para realizar a biografia: o livro traz dezenas de transcrições de documentos, confronta e esclarece versões diferentes sobre a data da morte do biografado, apresenta cartas e testamentos escritos pelos personagens do século XVI e levanta clarões da pesquisa histórica sobre a Santos colonial.

 

Com 311 páginas, o livro traz 500 notas de rodapé que, além de indicarem os locais e documentos pesquisados, oferecem aos pesquisadores do futuro informações úteis para novos estudos, que poderão colaborar ou até eventualmente corrigir alguma informação levantada por Rueda; mas é inegável que Braz Cubas: homenagem a uma vida já se tornou referência obrigatória para os que quiserem estudar a história de Santos. Como a prefeitura comprou 500 exemplares do livro e a câmara outros 200, podemos contar com que as bibliotecas das escolas municipais e os arquivos públicos possam tornar o livro disponível a seus alunos já neste início de ano letivo.

 

I

Os dois terços iniciais de Braz Cubas tratam da biografia em si e de alguns aspectos da cidade como uma história dos prédios da Santa Casa, criada também pelo português, e da velha matriz de Santos. Já o terço final cobre o período que vai do final do século XIX até o ano 2000; Braz Cubas já estava morto há mais de duzentos anos e, a partir daí, ao invés de biografia, o autor traça uma história da construção em 1908 do monumento a Braz Cubas, isto é, captura um momento da cidade no auge das transformações urbanas daquele período. Guilherme Álvaro, médico da Comissão Sanitária de Santos, relatou as transformações pelas quais a cidade passava:

 

Toda gente concordava que Santos estava se transformando, crescendo continuamente sua população, intensificando-se patentemente a vida urbana, surgindo usos e costumes novos, resultantes naturais do desaparecimento das epidemias desde 1901. Confiava-se no futuro da cidade, onde casas e terrenos valorizavam-se continuamente, diminuindo cada mês o número de “diários” que viajavam para São Paulo, ouvindo por toda a parte afirmações de residência definitiva na cidade. A própria vida doméstica santista se transformava, generalizando-se o conforto, popularizando-se a instalação de banheiras, tomando os interiores aspecto de mais gosto, substituindo-se os mobiliários de carregação, fabricados para transporte fácil, por outros mais cuidadosos e custosos.

 

Nos anos seguintes, a engenharia sanitária cuidaria de garantir a sanidade do tecido urbano. Em 1907, uma grande festa marca a inauguração do primeiro dos famosos canais de drenagem de águas pluviais, marcos da arquitetura local idealizados pelo engenheiro sanitarista Francisco Rodrigues Saturnino de Brito, encarregado da Comissão Estadual de Saneamento na cidade, responsável pela construção de nove canais entre aquele ano e 1927. Em 1910, apenas os canais 1 e 2 estavam prontos, substituindo antigos rios e córregos que se encharcavam com a chuva ou com as marés.

 

Em 1908, no mesmo ano da inauguração do monumento a Braz Cubas, o presidente Afonso Pena assinaria em 21 de maio o decreto nº. 6.961, que autorizava a Companhia Docas de Santos a iniciar a construção de suas oficinas e da residência do inspetor da empresa no edifício nº. 01 da Avenida Taylor, conhecida hoje por Rodrigues Alves, no bairro portuário do Macuco.

 

Assim como Braz Cubas havia criado Santos, o monumento em sua homenagem marca uma nova história para a cidade, como ressalta a historiadora Wilma Therezinha Fernandes de Andrade no prefácio ao livro de Waldir Rueda:

 

No grupo escultórico das três figuras da base [do monumento], interpreta-se o simbolismo de três fases significativas da história santista. O primeiro: o nascimento da vila junto ao porto natural; o segundo: a Irmandade da Misericórdia, mantenedora da Santa Casa; e o terceiro: a figura adolescente a lembrar o crescimento da Cidade.

 

A história do monumento começa em 1887, ainda no Império, quando o comendador Alfaya Rodrigues, vice-presidente da câmara municipal de Santos apresenta uma indicação de lei com o objetivo de levantar recursos para a construção por meio de um “imposto de cinco décimos de real, por quilo, nos produtos do país que entrassem no porto de Santos”. Transformado em lei pela Assembléia Provincial (o equivalente à Assembléia Legislativa do Estado) o imposto foi cobrado até 1894, já na República, atingindo a marca de 600 contos de réis, “soma elevada para a época”. Sem mais detalhes, Rueda conta que o dinheiro acabou desviado “criminosamente”.

 

Já em 1901, mas ainda comendador, o mesmo Alfaya Rodrigues reapresenta a idéia à Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Santos, instituição fundada por Braz Cubas e da qual Rodrigues era mesário. Proposta aprovada, faltaram recursos para a concretização da homenagem. Ainda assim, Alfaya Rodrigues parte para Portugal em 10 de junho de 1904 com o objetivo de levantar informações sobre o fundador e lá descobre um desenho da face de Braz Cubas na Santa Casa de Lisboa. De posse do retrato, se dirige para a Itália, para contratar o escultor Lorenzo Mazza, professor da Academia Lingüística de Belas Artes de Gênova que, no ano seguinte, entrega o busto de Braz Cubas que hoje ainda se encontra no saguão da Santa Casa.

 

Ainda não satisfeito, Rodrigues volta a apresentar a idéia do monumento à câmara municipal, sob responsabilidade do mesmo escultor pelo custo de 50 mil liras. O contrato entre a Câmara Municipal (na República Velha, as câmaras governavam as cidades) e o escultor é assinado em 10 de março de 1906. Além dos valores e das condições de entrega, o contrato resgatado por Waldir Rueda especifica as dimensões do monumento (“será constituído por três partes componentes, a saber: uma base formada de três degraus; um pedestal circundado por figuras alegóricas e trechos de ornamentação decorativa, e da estátua de Braz Cubas”) e da estátua (“medirá a altura de dois metros e cincoenta centímetros, 2,50, e será esculpida em mármore de Cara digo Carrara Lvacchoni obedecendo à altitude desenhada na aquarela do artista Gameiro, de Lisboa”). Em seguida, o historiador oferece aos leitores prestações de contas, notas fiscais e demonstrativos financeiros que lastrearam a operação internacional.

 

Em 1º de janeiro de 1908 chegam a Santos o escultor e um assistente. O primeiro ficou hospedado no Hotel Parque Balneário, no Gonzaga, e o outro ficou no Washington Restaurant, no Centro (sim, Rueda conseguiu as notas dos hotéis). A inauguração já estava marcada: 26 de janeiro.

 

De tão rica a documentação, os acontecimentos do dia 26 ficam para a próxima semana.

 

Waldir Rueda, o tombador

A história de Santos já vem contando há algum tempo com os serviços de Waldir Rueda, atento aos riscos que correm o patrimônio histórico. Em 30 de janeiro, ele entrou no Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Santos e na Promotoria Pública do Meio Ambiente com pedido de tombamento da Igreja Anglicana, no José Menino, última construção remanescente da arquitetura neo-normanda no estado de São Paulo.

 

Outro pedido em tramitação, iniciado em 1º/11/07, é o tombamento do complexo da Escola São José, na Ana Costa, que inclui a própria escola, uma igreja e a sepultura de um obelisco de mármore de carrara construído em 1920: “As pessoas se confundem, acham que tem que tombar uma sepultura por causa do sepultado. Não é, ninguém sabe quem é Vitálico Leal, mas é por causa do valor arquitetônico da própria construção”.

 

Já tombado pelo Condepasa após iniciativa de Rueda está o Prédio da Faculdade de Filosofia, no número 247 da Rua Euclides da Cunha, patrimônio histórico da cidade oficialmente desde 20 de dezembro de 2007.

 

Referências

Waldir Rueda. Braz Cubas: homenagem a uma vida. Santos: Comunnicar, 2007.

 

Guilherme Álvaro. A Campanha Sanitária em Santos. São Paulo: 1919. Consultado em Ana Lúcia Duarte Lanna. A transformação urbana: Santos 1870-1920. In: Revista USP (mar./mai. 1989); São Paulo: Coordenadoria de

Comunicação Social da Universidade de São Paulo, 1989.

 

Wilma Therezinha Fernandes de Andrade. Centenário dos canais: a obra de

Saturnino de Brito. Palestra na Comissão Especial de Vereadores das comemorações do centenário da inauguração do primeiro dos canais de drenagem. Santos, 25 agosto de 2005. Disponível em <http://www.canaisdesantos.com.br/historia.htm>.

Ao lado do texto, uma tabela traz a data de inauguração de cada um dos 9 canais do projeto da Comissão de Saneamento.

 

Ministério da Viação e Obras Públicas. Portos do Brasil. Lei, decretos, contractos e mais actos officiaes sobre os portos do Brasil, com annotações e noticia resumida dos estudos, projectos, concessões e obras de melhoramentos nelles executados de 1905 a 1911. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912.

 

Condepasa: <http://www.santos.sp.gov.br/cultura/condepasa/condepasa.html>

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