Sábado, 28 Dezembro 2024

Horas mortas. Inverno. Em plena mata. Em plena Serra do Mar.

 

A frase acima, de marcação acirrada, se parece com as indicações de cenas de um roteiro cinematográfico. Mas na verdade, este é o verso inicial de Fugindo ao cativeiro, poema já centenário de Vicente de Carvalho, incluído no volume Poemas e Canções (1908).

 

Fugindo ao cativeiro, como o próprio nome entrega, relata uma fuga de escravos. Eles descem a serra com o objetivo de alcançar o quilombo do Jabaquara, em Santos, considerado por muitos pesquisadores um dos maiores que o Brasil já teve, ainda que de curta duração.

 

E a narrativa do poema é mesmo cinematográfica. Dividido em quatro partes, ele começa com a apresentação do cenário. As imagens da serra são como tomadas gerais (“amplidões do horizonte”, “cordilheira”, “o chão corre às soltas”). É só na 28ª linha que começamos a perceber a presença humana entre moitas, cipós, e troncos.

 

E em cada árvore altiva, e em cada humilde arbusto,

Há contorções de raiva ou frêmitos de susto.

 

A partir daí, o poeta muda a escala de observação. De majestosa, a vegetação passa a obstáculo do avanço do grupo:

 

- Uma vegetação turbulenta e bravia

Rasteja, alastra, fura, enrosca-se, porfia:

Moitas de craguatás agressivos; rasteiras

Tapoeirabas tramando o chão todo; touceiras

De brejaúva, em riste as flechas ouriçadas

De espinhos; e por tudo, e em tudo emaranhadas,

As trepadeiras, em redouças balançando

Hastes vergadas, galho a galho acorrentando...

 

De ruídos e dificuldades continua o avanço. Só mais à frente é que o poeta nos apresenta seus personagens, já para lá da linha 60:

 

São cativos fugindo ao cativeiro. O bando

É numeroso. Vêm de longe, no atropelo

Da fuga perseguida e cansada. Hesitando,

Em recuos de susto e avançadas afoitas,

Rompendo o mato e a noite, investindo as ladeiras,

Improvisam o rumo ao acaso das moitas.

 

Na segunda parte, meio caminho andado, o poeta aproxima ainda mais a sua lente e, do plano geral do bando em fuga, passa ao close que nos mostra a mãe que perde o filho, fraco, que não resiste ao frio da serra e ao esforço de sua ultrapassagem.

 

Vai-lhe morrer, morrer nos próprios braços,

Morrer de fome, o filho bem-querido;

E ela, arrastando para longe os passos,

O amado corpo deixará, perdido

Para os seus beijos, para os seus abraços...

 

O episódio cria a tensão necessária para a valorização da esperança, logo a seguir, na terceira parte, quando, amanhecendo, os olhos dos escravos reconhecem a planície litorânea, “clara, risonha, aberta, verdejante”, num verdadeiro contraste com o desconforto da selva. A partir daí, começa a “íngreme descida” pela “floresta espessa”. Mas descem rindo, felizes, sem lembrar que:

 

Fica um pouco de trapo em cada espinho

E uma gota de sangue em cada trapo

 

Indícios que, desde o início da fuga, são o bastante para atrair os capatazes e seus cães. A aproximação da “soldadesca" é dramática:

 

Foge... Rompendo o mato e rolando a montanha,

Foge... E, moitas adentro e barrocais afora,

Arrasta-se, tropeça, esbarra, se emaranha,

Arqueja, hesita, afrouxa, e desanima, e chora...

 

Até que um dos fugitivos, no clímax, entrega a vida com o objetivo de retardar o encalço. A batalha é violenta:

 

Erguendo o braço, ele ergue a foice: a foice volta.

E rola sobre a terra uma cabeça solta.

Sobre ele vem cruzar-se o gume das espadas...

“Ah, prendê-lo, jamais!” respondem as foiçadas

Turbilhonando no ar, e ferindo, e matando.

 

De lado a lado o sangue espirra a jorros... Ele,

Ágil, possante, ousado, heróico, formidando,

Faz frente: um contra dez, defende-se e repele

 

E não se entrega, e não recua, e não fraqueja.

Tudo nele, alma e corpos ajustados, peleja:

O braço luta, o olhar ameaça e desafia,

A coragem resiste, a agilidade vence.

 

E, coriscando no ar, a foice rodopia.

 

Não é uma luta digna de ser filmada? E assim ela continua até que o guerreiro, um homem, não um escravo, caia com um tiro de arma de fogo. Sua resistência é suficiente para que o resto do grupo, inclusive aquela mãe que perdeu o filho, chegue “na abençoada terra / onde não há cativos”.

 

Referência

Vicente de Carvalho. Fugindo ao cativeiro. In: Melhores poemas. Seleção de Cláudio Murilo Leal. São Paulo: Global, 2005.

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