A inspiração de um poeta é como solo inculto
Que à toa se abre em flor:
Todo este esse turbilhão de idéias em tumulto
Que, nem eu sei porque, rimei com tanto ardor,
Veio-me de ter visto
– Pela janela do meu quarto de doente –
– Que maravilha?
– Isto:
Um trecho muito azul de céu alvorescente;
Um pedaço de muro engrinaldado de hera;
E, resumo feliz de toda a Primavera,
Ao leve sopro de uma aragem preguiçosa,
O balanço de um galho embalando uma rosa...
I
Os versos acima são da terceira parte de De Manhã, um dos Poemas e canções escritos por Vicente de Carvalho, obra que, assim como a imigração japonesa, completa 100 anos em 2008.
Poemas e canções consolidou o espaço do poeta na literatura nacional. Na apresentação que fez para o volume dedicado ao escritor santista na Coleção Melhores Poemas da Global Editora, o poeta e professor de literatura Cláudio Murilo Leal considera o livro “emblemático” do autor:
Nesta recolta [colheita], encontra-se a melhor seleção de seus poemas, aí refundidos e cristalizados em sua forma definitiva, além de incluir, no final do livro, os poemas de Rosa, rosa de amor (1902).
De manhã é um dos exemplos que mostram a resistência da obra de Vicente de Carvalho após a avalanche modernista iniciada em 1922. Para além do formato poético do fim do século XIX – o parnasianismo e sua técnica da arte pela arte e da palavra justa (mot juste) –, o trecho selecionado revela também um comentário sobre o próprio fazer poético, o que seria uma característica predominante da literatura do século XX.
É do próprio Cláudio Murilo Leal uma série de motivos que contaram para a manutenção de Vicente de Carvalho entre os grandes e mais lembrados da poesia nacional. Em primeiro lugar, ele considera o poeta um “parnasiano atípico”, de tons românticos – o que os parnasianos evitavam – e de aproximação à poesia oral, como revela o uso de canções, cantigas e trovas na confecção de seus poemas, dificultando assim a filiação direta do poeta a uma ou outra escola. Vejamos como o professor trata desta multiplicidade:
Alguns críticos, como Sérgio Milliet, observaram que o poeta investiu mais no calor da emoção do que na frieza marmórea dos parnasianos. A teoria da recepção ressaltaria um contínuo diálogo entre o leitor e o poema, sob a égide da claritas (a clareza e a claridade). Entre outras virtudes, o fino ouvido de Vicente de Carvalho para as entonações do cotidiano soube amenizar a rigidez do verso parnasiano adotado por Alberto de Oliveira. E pelo tratamento despojado dado aos temas universais, como o amor, a morte e o mar, conseguiu ele se aproximar-se de um público mais amplo, mostrando-se menos elitista que Olavo Bilac e Raimundo Correia. Vicente de Carvalho foi ele mesmo, tendo adquirido uma dicção própria e inconfundível entre os seus pares, o que certamente tornou-se um dos motivos das inúmeras reedições de sua obra.
O comentarista alerta para que o poeta não seja conhecido apenas como “o poeta do mar”, estereótipo que limita a compreensão de sua obra, que se volta também para o amor, a natureza em geral e até para o épico em Fugindo ao cativeiro.
O professor, em sua apresentação, destaca também os versos a seguir, “quase modernistas”:
Ai, a alma tupi, bem mal domesticada
À macaqueação cabocla do europeu...
Ainda que Leal avise que, ao contrário dos modernistas, mantinha uma atitude de respeito em relação à tradição, não como identificar acima alguns procedimentos do modernismo. Estão ali o tupi, que mais tarde serviria ao trocadilho modernista bilíngüe “tupi or not tupi”, e a crítica à imitação sem reflexão da matriz européia bem ungida na expressão “macaqueação”, modernista até a medula. Daí que modernistas de primeira linha como Manuel Bandeira e Mário de Andrade elogiaram o poeta. O primeiro escreveu que em relação aos pares parnasianos, Vicente de Carvalho era “mais vário, mais completo, mais natural, mais comovido”; Mário de Andrade não encontrava em Carvalho um “legítimo parnasiano”. Para ele, que via como parada no tempo a poesia de Martins Fontes, o autor de Poemas e canções era “mais poeta que todos os metrificadores de sua geração”.
II
A obra de Vicente de Carvalho já é de domínio público, embora ainda não seja encontrada para ser baixada no site mantido pelo Governo Federal que pretende reunir obras de todo o Brasil nestas condições (www.dominiopublico.gov.br). Até por causa disso, a obra merece, nesses 100 anos de publicação, uma reedição caprichada, ainda mais que traz um prefácio de Euclides da Cunha. Ele termina assim suas considerações sobre o Vicente de Carvalho, poeta “que nobilita o meu tempo e a minha terra”.
Referências:
Vicente de Carvalho. Melhores Poemas. Seleção e apresentação Cláudio Murilo Leal. São Paulo: Global Editora, 2005.