“Veio a noite, e veio a lua,
e uma tristeza infinita... Mas a morte,
a morte não veio.”
Narciso de Andrade
Escrevo este texto no início da tarde do último domingo, ainda em 2007, logo depois de ter recebido do escritor Flávio Viegas Amoreira a notícia da morte do poeta Narciso de Andrade, aos 82 anos, no início da noite de sábado (29), na Casa de Saúde de Santos, onde estava internado desde o natal.
Não conheci Narciso. Fomos apresentados durante um evento de leitura de poesia no consistório da Unisanta creio que ainda no primeiro semestre de 2007 e ele já estava bastante frágil. À sua família e amigos ficam meus pensamentos e um abraço.
Se não tive a sorte de conhecê-lo, tive pelo menos o prazer de escrever algumas vezes sobre sua poesia ao longo do ano graças à publicação de seus poemas pela editora da Unisanta, que no final de 2006 lançou o volume Poesia sempre, com parte de sua produção lírica escrita ao longo de 50 anos reunida pela primeira vez em livro.
Dos 101 poemas de Poesia sempre, temos cinco sobre a morte. Eles não apresentam muita diferença em relação aos demais. Como grande parte da poesia de Narciso, seu tema é dissolvido no cotidiano ou, como assinalou Lúcia Maria Teixeira Furlani no prefácio, é o próprio cotidiano que é arrancado de sua normalidade e transportado a outra dimensão: são mortos que resistem, “à caça de ecos e nuvens e cheiros” em Os mortos; é a criança que passa na rua e faz algum barulho no Velório; é a preparação para a morte em Poema da morte não vinda; os cuidados da família com o corpo do morto em A pele do morto; ou a vida prosaica em A face do morto.
Mas nesse momento que o próprio poeta se manifeste sobre a morte:
Os mortos
Os mortos resistentes
se quedam mudos calados nunca.
Permanecem resistindo
a todas as fomes e ânsias.
Resistem freneticamente
até ao que convencionamos chamar vida.
E nada lhe devora as entranhas
realizadas no cristalizado espírito.
Entranhas maravilhosas
recostadas no solo da eternidade.
Ah, os mortos são fabulosos caçadores
à caça de ecos e nuvens e cheiros!
Aos mortos – implacavelmente mortos embora –
não chamaremos dizimados
que a sua matéria palpita e explode
em cada tempo da vida nossa
que para eles é morte.
Nós não passamos de formações
operadas sobre carnes falecidas.
Nossa isso que chamamos alma
é a forma dos antepassados
por nós vivida no presente.
Quando caminhamos
nossos mortos nos acompanham.
A nossa condição de liberdade
se apóia na incrível
presença dos mortos
em sublime reino sem catálogo vivendo
devo confessar que vos amos
e por entre pedras folhas bactérias
como suave inseto circulo
ouvindo meu sangue palpitar
na vida que hoje tenho
e toda feita de outrora.
Poema da morte não vinda
Senti que a noite crescia
diante de meus olhos e por isso
me preparei para morrer. Mas, a morte...
A morte não veio.
Veio, isso sim, o suave rumor
de ondas rolando na distância,
de pétalas tombando e de pássaros
em revoada sobre alamedas de melancolia,
agosto em pranto sobre o instante.
E veio um odor de rosas,
de cravos, flores silvestres,
campinas recobertas de orvalho,
Terra molhada e a doce
maresia de uma praia solitária...
Cheia de mistério e presságio,
diante de meus olhos a noite crescia,
Mas a morte... A morte não veio.
Veio, isso sim, incontida ânsia,
rebelado desejo, louca vontade
de correr sobre rochedos
pisando algas e espumas
e deixar os membros doloridos
irem cedendo, pouco a pouco,
ao convite azul das águas fundas...
Veio a noite, e veio a lua,
e uma tristeza infinita... Mas a morte,
a morte não veio.
Epílogo
No lançamento de Poesia sempre escrevi que os poemas de Narciso são “frutos da experiência do autor como repórter cobrindo as atividades portuárias, mas também revelam detalhes da cidade e de seu clima. Além dos temas do cotidiano urbano e portuário, Narciso escreve também muita poesia lírica, com peças com nomes de mulheres e a lua como motivo literário”.
Na introdução, Adelto Gonçalves conta um pouco da experiência de Narciso como repórter do porto na seção Vida marítima, do jornal O Diário:
Amassava lama à porta dos armazéns, subia nos navios, conversava com os comandantes, ouvia os doqueiros, os estivadores, os carregadores que, em fila indiana, suportavam nos ombros sacos de 60 quilos de café, a subir e descer os vapores. Não havia dia em que não chegasse à redação com uma boa reportagem. “Como falava inglês e francês, não tinha dificuldade para conversar com o pessoal dos navios estrangeiros”, conta. “Naquela época, as grandes personalidades do mundo sempre passavam por aqui a bordo de navios de passageiros”.
Na semana passada, por coincidência, escrevi sobre a literatura no turismo e ali destaquei a utilização dos versos iniciais de Cais, de Narciso de Andrade, na entrada da Ponte Edgar Perdigão, na Ponta da Praia:
Com tanto navio para partir
minha saudade não sabe onde embarcar...
Cais é um poema que também revela o lado repórter de Narciso. Nele, como já também escrevi antes, a perspectiva do narrador é a de quem está dentro do porto, pisando no chão do cais, olhando as espumas que ficam no lugar dos cascos.
Narciso manteve uma amizade literária com Roldão Mendes Rosa, eles eram os poetirmãos. Para encerrar o Porto Literário desta semana triste para a literatura santista, um poema homenagem que Roldão escreveu para Narciso:
Ao poetirmão do vento e das maresias
Para Narciso de Andrade
O poeta, Irmão, se despede do dia.
O corpo não sabe
(desaprende a cada signo que lê
a cor das horas).
O corpo ama, dorme, come, trabalha.
Não sabe
que todo longe só é longe no exílio.
O poeta sabe e sofre antes do corpo.
Ele ouvia (podia ouvir)
o horizonte e seus navios,
o último cargueiro da madrugada marítima
na névoa da barra,
as pombas no ombro do fundador da Cidade,
os imortais pardais
no ombro das árvores que anoitecem na praça.
O corpo, Irmão que sabes,
nada sabe do poeta.
O poeta percorre sua íntima geografia em névoa,
pedra, sal, maresia.
Os pássaros que ouvia talvez tenham morrido,
ou simplesmente dormem (se é que existiram).
Os navios (há navios?) provavelmente deslizam invisíveis
a caminho da barra.
E o porto, velho Irmão,
é um terno rumor
de pedra caída no começo do mundo.
O mundo começa longe.
No segundo mês do ano de 24, o mundo começa
numa rua de lojas sonolentas,
de bondes e navios que atravessam o sono.
(Um dia, o poeta escreveu:
“Nasci num porto do Atlântico.
Dia e noite as águas cantam.
Ouvimos o mar desde o berço
no cais na praia no sono”.)
E não pôde continuar.
E não continuará.
O poeta irmão do vento se despede sem pássaros
do dia que se desprende
(O corpo é burro, nada sabe do poeta.)
O poeta está preso
na rua que o fez e o deu livre à Cidade.
Na mesma rua onde brincou de tempo e vento
o poeta está preso.
(E nada sabia naquele tempo a respeito da palavra exílio,
senão que um sabiá cantava na memória de alguém.)
Referências:
Narciso de Andrade. Poesia sempre. Santos: Editora Unisanta, 2006.
Roldão Mendes Rosa. Poemas do não e da noite. São Paulo: Editora Hucitec; Santos: Prefeitura Municipal, 1992.
Narciso de Andrade em Porto Literário:
Lacunas da história e da poesia santista são preenchidas por editoras da cidade, 03/abril/2007.
Diálogos entre Narciso de Andrade e Roldão Mendes Rosa, 10/04/2007.
Narciso e Pagu: entre o mito e a amizade, 17/04/2007.
Literatura do porto ou da cidade?, 08/05/2007.
Um ciclo sobre o ciclo do romance de identidade portuária, 17/07/2007.
O porto de nossos dias e o chão do cais, 31/07/2007.
Com tanto poema para partir, 24/12/2007