O caderno de turismo da Folha de S. Paulo nesta semana que acaba trouxe uma reportagem sobre turismo literário no Rio de Janeiro, com sugestões aos turistas para que visitassem e conhecessem os lugares freqüentados por Machado de Assis na então capital do Império e, posteriormente, da República. Considerado por muitos nosso maior escritor, é nas ruas do Rio de Janeiro da virada do século XIX para o XX que o bruxo do Cosme Velho (bairro carioca) faz seus personagens andarem e viverem suas tramas.
I
E turismo literário em nossas terras, como seria? Um indício é a Ponte Edgar Perdigão, de cujos atracadouros partem e chegam barcas que transportam diariamente centenas de pessoas entre a Ponta da Praia, em Santos, e as praias do Góes e de Santa Cruz dos Navegantes, em Guarujá. Desde a reinauguração da ponte, qualquer um que ali entra pode ler à direita o verso inicial de Cais, poema de Narciso de Andrade:
Com tanto navio para partir
minha saudade não sabe onde embarcar...
Foto: Skyscrapercity
Que frase para um lugar onde se tomam barcos, hein? Quem escolheu o verso para o local foi o secretário de Comunicação da Prefeitura de Santos à época da inauguração do local, José Alberto Pereira, o Sheik, co-autor de Santos: uma história de pioneiros, piratas, revoltas, epidemias, carnaval e futebol. No lançamento do livro, em março deste ano, ele me contou que na época da inauguração da ponte, no final de 2006, estava procurando por uma boa frase para o local e a descobriu em uma matéria da repórter Elcira Nuñez y Nuñez, de A Tribuna. Elcira havia me entrevistado sobre a pesquisa que faço sobre o romance Navios Iluminados e outras literaturas portuárias e, para completar a matéria (Porto santista é fonte de inspiração), acabou escrevendo também sobre o poema de Narciso, que eu ainda não conhecia e que, por coincidência, acabou sendo publicado pela primeira vez em livro logo depois, em dezembro de 2006 (Lacunas da história e da poesia santista são preenchidas por editoras da cidade).
Fiquei muito satisfeito ao ver que uma entrevista sobre a pesquisa que faço permitiu à repórter acrescentar novos elementos ao material e que todos eles juntos conseguiram sensibilizar um secretário de governo (ainda bem que Sheik é repórter e escritor, e não um burocrata).
No caso da ponte Edgar Perdigão, a frase do poeta é apenas ilustrativa, mas o exemplo tem de ser seguido e ampliado.
II
Ainda pelas proximidades da Ponte Edgar Perdigão temos mais uns versos ilustrativos. São do poema Da Ponta da Praia, em que Alberto Martins poetiza a visão dos navios entrando ou saindo do estuário santista, visão que atrai tantos visitantes ao calçadão à beira-mar.
Da calçada vejo
a quina de aço
– feito cunha –
na paisagem:
A Pouca Farinha
o forte em ruínas
o Góes... e por aí vai,
devorando a outra margem.
Boa viagem.
Da Ponta da Praia é um poema do livro Cais. Ali, os versos são acompanhados por uma série de gravuras feitas pelo próprio autor. A página dupla digitalizada abaixo tem seu espaço dividido entre uma gravura e o trecho final do poema acima transcrito.
A imagem abaixo da capa de Transatlânticos de Cruzeiros Marítimos – O Passado no Presente, do colega de PortoGente Laire José Giraud, mostra a atenção que recebem os navios e suas cunhas que “devoram a outra margem”.
Outros pontos da cidade também podem ser ilustrados poeticamente. Mas a própria literatura também pode despertar interesse turístico, de forma autônoma, sendo ela mesma o objeto de interesse dos visitantes. Voltamos a isso na próxima semana.
Canja
Enquanto isso, fiquemos com os dois poemas citados:
Cais, de Narciso de Andrade:
– 1 –
Com tanto navio para partir
minha saudade não sabe onde embarcar...
– 2 –
A água comove a pedra
que parece fremir levemente.
Na oscilação breve das marolas
há homens malogrando olhares
vagos, indecisos, alongados.
(Completa ausência de tempo.
O calendário se desfaz
nas sombras, na brisa e na anatomia
recortada do estuário).
– 3 –
Cambia todos os tons
esta angústia à flor da água.
– 4 –
Não há gaivotas nem quaisquer
outros pássaros oceânicos.
Todavia aquela espuma brilhante
sugere o roçar logo de algum.
– 5 –
Silenciosamente pesados
firmam-se nas horas os navios,
fortuitos donos do porto,
transitórios proprietários
de metros de alvenaria
que fazem maior a tristeza
da imensa nostalgia portuária.
Ah!, receber todos os adeuses,
todos os abraços, todos os olhares
de ida e volta e permanecer
ancorado na paisagem imutável!
– 6 –
Passarinho no topo do mastro
partirá ou há de voltar para a terra?
E agora Da Ponta da Praia, de Alberto Martins:
Tão perto de tocar
o instante quase-já
de toda viagem;
no entanto, rente à praia
é tanto rente ao fundo
que só percebo
o espesso casco negro
brilhando à tona
um segundo. E depois?
Viagem houve de fato?
Ou tudo não passa
de um golpe
do acaso?
Mas –
e o casco?
É úmido. Está coberto
de cracas e a ferrugem
que rói as chapas
rói a carga
é visível
da Ponta da Praia
a olho nu.
Da calçada vejo
a quina de aço
– feito cunha –
na paisagem:
a Pouca Farinha
o forte em ruínas
o Góes... e por aí vai,
devorando a outra margem.
Boa viagem.
Referências:
Narciso de Andrade. Poesia sempre. Santos, Editora da Unisanta, 2006.
Alberto Martins. Cais; gravuras do autor. São Paulo: Editora 34, 2002.
Laire José Giraud. Transatlânticos de Cruzeiros Marítimos – O Passado no Presente. Santos: sem editora, 2003.