Em 28 de agosto, o historiador italiano Carlo Ginzburg falou em São Paulo, no auditório de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo onde lançou no Brasil sua nova coletânea de ensaios, O fio e os rastros. Na ocasião, ele proferiu a palestra Medo, reverência, terror: lendo Hobbes hoje, sobre o pensamento político de Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo inglês autor de Leviatã, nome do monstro bíblico ao qual Hobbes compara o Estado que tudo controla. Porto Literário estava lá.
I
Para ler Hobbes hoje, Ginzburg começou sua conferência avisando que primeiro devemos manter o presente à distância. Assim faremos e para os dias de hoje voltaremos no epílogo.
Partimos então para a gênese do pensamento do inglês, marcado pela leitura da Bíblia e pela idéia de pecado original. Daí a necessidade da organização social, pois o estado de natureza é marcado pela guerra de todos contra todos (o homem é o lobo do homem) e a agressão real ou potencial, que só podem ser aplacadas sob o pacto por meio do qual se abre mão de direitos. “O medo está no centro da filosofia política de Hobbes”, disse o historiador, e é o medo que faz os membros da sociedade buscarem a convivência por meio do pacto.
Em seu estilo detetivesco, Ginzburg apontou um trecho da História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, traduzida para o inglês por Hobbes. No capítulo 59 do livro II, o historiador grego relata a praga em Atenas, cujos efeitos erodem o pacto da cidade-estado. A população, sem grandes perspectivas de sobrevivência, se volta para a manifestação e a realização de desejos, aos crimes e à não realização de julgamentos, tudo “o que uma sociedade não deveria ser”, completou o historiador italiano, para quem a “licenciosidade começou na doença”.
II
Conta Ginzburg que a passagem de Tucídides sobre a licenciosidade em Atenas, que “nenhum medo dos deuses nem as leis dos homens restringia”, é traduzido por Hobbes por “nenhum medo dos deuses nem as leis dos homens intimidava”. A diferença entre “restringia” e “intimidava” é vista pelo historiador como o “primeiro e súbito aparecimento da idéia capital do pensamento de Hobbes”, que seria o medo.
Frontispício da edição de 1651 de Leviatã. Leviatã é um monstro bíblico cruel e invencível que simboliza, para Hobbes, o poder do Estado absoluto. No desenho, seu corpo é constituído de inúmeras cabeças e ele empunha os símbolos dos dois poderes, o civil e o religioso.
Ao lado da ignorância das causas naturais, o medo, no pensamento de Hobbes, dá origem ao pacto da religião que, por sua vez, serve de lição ao Estado. Por não ser natural, o pacto necessita de uma força maior para ser mantido: o Estado Leviatã, imagem do monstro bíblico que tudo abarca e que exige “admiração respeitosa”. O poder do Estado é formado pela soma da força e da intimidação.
E daí voltamos ao trecho traduzido por Hobbes, no qual o termo original em relação ao medo dos deuses e das leis – restringia, que Ginzburg aproxima da reverência – é substituído por intimidava – awe em inglês, mais apropriado à idéia de terror e ao papel que Hobbes garante ao estado.
Epílogo
Depois desta passagem por Hobbes – que Porto Literário não tem condições de recriar com o brilho intelectual do historiador italiano – Ginzburg retorna ao presente, mais precisamento a 2003, quando os Estados Unidos bombardeiam o Iraque por meio da Operação Shock and Awe (Choque e Pavor no Brasil) no qual a palavra awe não é o terror psicológico – quase de filme – que a tradução do nome da operação para as línguas latinas pode sugerir, mas sim o terror sagrado, bíblico, que Hobbes instaura no pensamento político na tradução que faz de Tucídides e que chega aos dias atuais na “arrogância militar tecnológica”, num mundo em que os “estados atuam pelo terror” e promovem o “laço social que une todos num nó de ferro”.
Referência:
Carlo Ginzburg. O fio e os rastros. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.