Sábado, 28 Dezembro 2024

O escritor português Gonçalo M. Tavares inicia O Senhor Calvino com três histórias que se passam em sonhos de seu protagonista, personagem que mimetiza o estilo e os temas do escritor italiano.

 

No primeiro sonho, o senhor Calvino se atira da janela do 30º andar atrás de suas roupas, jogadas alguns momentos antes. Durante a queda, ele se veste, dá um nó na gravata, amarra os sapatos, dá uma geral nas vestes, confere o nó da gravata e, “impecável”, chega ao solo; no seguinte, o protagonista está em seu escritório quando uma borboleta entra pela janela e toda sua atenção se volta ao inseto que pousa nos objetos pela mesa e acaba entrando em sua cabeça pelo ouvido, o que lhe dá uma grande dor de cabeça; no terceiro, o senhor Calvino discute porcentagens com seu sócio quando uma baleia engole o escritório em que conversam e mais a rua inteira. O espantoso é que todos continuam com suas conversas e cálculos como se tudo continuasse na mesma.

 

O vale tudo dos sonhos funciona como um “era uma vez”, uma senha ou chave para a entrada no universo fabular do autor de As cidades invisíveis e Se um viajante numa noite de inverno.

 

I

Algumas das histórias de Calvino, o escritor, exploram, como já havia comentado em Um bairro chamado literatura, conceitos científicos e postulados filosóficos. Uma delas é T=0, do livro de mesmo nome, publicado agora em 2007 pela Companhia das Letras num volume que reúne também As cosmicômicas, que deu origem à série, e outras histórias do mesmo calibre.

T=0, lembrando as aulas de física e química do colegial (atual ensino médio), é o momento inicial de uma ação ou transformação, que pode ser acompanhada em T¹, T², T³, Tn etc.

 

Na história de Calvino, esse momento inicial é aquele em que o narrador, um caçador, acaba de soltar uma flecha em direção a um leão que, por sua vez, salta em direção ao atirador. Com flecha e animal no ar, o caçador inicia em t=0 uma reflexão sobre sobre as possibilidades de resultados que dali poderiam derivar; reflexão que se estende por todo o conto, o que impede, num ritmo de suspense, a chegada de T¹ e o desfecho da caçada:

 

Tenho a impressão de que não é a primeira vez que dou por mim nesta situação: com o arco que acaba de se afrouxar na mão esquerda esticada para a frente, a mão direita contraída para trás, a flecha F suspensa no ar a cerca de um terço de sua trajetória, e, um tanto mais adiante, suspenso ele também no ar, e também ele a cerca de um terço de sua trajetória, o leão L no instante em que vai saltar para cima de mim com a goela escancarada e os artelhos esticados.

 

E logo em seguida vemos como o talento de Calvino transforma em literatura de qualidade um exercício qualquer dos livros didáticos:

 

Em um segundo saberei se a trajetória da flecha e a do leão coincidirão ou não num ponto x cruzado tanto por L como por F no mesmo segundo tx, isto é, se o leão vai se revirar no ar com um rugido sufocado pelo fluxo de sangue que inundará sua garganta negra transpassada pela flecha, ou se vai desabar incólume sobre mim aterrando-me com uma dupla patada que vai me dilacerar o tecido muscular dos ombros e do tórax, enquanto sua boca, tornando a se fechar com um simplem impulso dos maxilares, vai arrancar minha cabeça do pescoço na altura da primeira vértebra.

 

A indefinição entre as duas eventualidades no momento inicial faz o arqueiro refletir sobre a experiência própria de cada caçada, que não pode ser repetida, pois cada leão “é diferente de qualquer outro leão”; ainda que a idéia de leão, nesse caso específico, seja “essa mancha amarela que pulou para fora de um moita na savana, essa baforada rouca que exala cheiro de carne sanguinolenta, e o pêlo branco do ventre e o rosado sob as patas e o ângulo agudo das garras retráteis assim como as vejo agora me dominando em uma mescla de sensações que chamo de ’’leão’’ só para lhe dar um nome”.

 

II

Outra das reflexões do arqueiro se volta sobre o próprio tempo e seu andamento. A partir do universo que é cada instante vivido, que comporta em sua duração todas as possibilidades futuras, ele conclui que o vislumbre de determinado instante (Tn) em sua completude só se torna possível a partir do instante seguinte (Tn+1), situação paradoxal porque Tn+1 é também todo um outro universo que necessitaria de Tn+2 para também ser compreendido.

 

Mais do que brincar com fórmulas, o que Calvino faz na verdade é um conto de suspense cujo gatilho é a dramaticidade de o arqueiro ter sua cabeça arrancada pelo leão num possível momento futuro, que ocorre além do conto, congelado em seu momento inicial.

 

III

A leitura de T=0 remete a um dos contos mais festejados do argentino Jorge Luis Borges, O jardim de veredas que se bifurcam, uma história com reflexões semelhantes sobre a bifurcação do tempo, “essa enorme charada”, disfarçada em um enredo de espionagem e assassinato explicado por um dos personagens, Albert:

 

A explicação é óbvia: O jardim de veredas que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts’’ui Pen [outro personagem]. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente a vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se contam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; em alguns existe o senhor e não eu; em outros, eu, não o senhor; em outros, os dois. Neste, em que me deparo com favorável acaso, o senhor chegou à minha moradia; em outro, o senhor, ao atravessar o jardim, encontrou-me morto; em outro, digo estas mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma.    

 

Epílogo

Ao terminar o conto antes do fim de T0, Calvino garante assim que todas as probabilidades de resultados entre a parábola entre o leão L e a flecha F possam ocorrer. Tudo depende apenas de cada leitor e do final que cada um escolher para o conto: uma flechada certeira no animal, um ferimento não mortal que dê ao leão uma chance de luta, um ferimento não mortal que permita ao arqueiro fugir, uma flechada errática que deixe o arqueiro em maus lençóis ou simplesmente uma patada mortal.

 

Referências:

Gonçalo M. Tavares. O Senhor Calvino. Ilustrações de Rachel Caiano. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007. Edição apoiada pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas.

 

Italo Calvino. T=0. In: Todas as cosmicômicas. Tradução: Ivo Barroso e Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

 

Jorge Luis Borges. O jardim de veredas que se bifurcam. In: Ficções. Tradução de Carlos Nejar. In: Obras completas I. São Paulo: Editora Globo, 1998.

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