Sábado, 28 Dezembro 2024

No número 06 da EntreLivros tem um anúncio do Corredor Literário na Paulista. Pilhas de livros formam prédios em torno da avenida:

 

 

O desenho materializa nas paredes dos edifícios a idéia de corredor literário: um catálogo de obras é o teto do Museu de Arte de São Paulo, o Masp; uma história das indústrias encostada em diagonal mimetiza a fachada do prédio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Fiesp. As lombadas dos livros empilham-se como os pavimentos dos edifícios. Em primeiro plano, Dante Alighieri, Geografia, História da Arte, Clarice Lispector, Miguel de Cervantes e Carlos Magalhães de Azeredo; A Era da Informática, Jorge Amado. Em outros prédios temos Drummond, Shakespeare, Machado, Guimarães Rosa. É a Rua da Literatura. A mensagem nos informa um movimento de acesso a livros, função primeira de eventos como o Corredor Literário.

 

I

Outra forma de agrupamento urbano que a literatura tomou nestes dias foi o bairro. Só que neste caso a operação teve lugar na própria ficção (é o que alguns chamam de metalinguagem, cujo exemplo mais clássico é a peça dentro da peça na dramaturgia de Shakespeare). É o que vimos na ilustração que abre O Senhor Calvino, de Gonçalo M. Tavares.

 

 

O senhor Calvino do título é um dos personagens que percorrem as ruas do Bairro cujos moradores têm nomes de escritores. Lá, moram, além de Calvino, os senhores Brecht, Proust, Borges, Voltaire, Wells, Kafka, Orwell, Balzac e a senhora Woolf, entre outros.

 

Mas os nomes acima não representam os escritores reais – ou empíricos, como explica Umberto Eco; eles representam uma parte do escritor, aquela que escreveu o texto. Parece óbvio, mas devemos pensar como Borges e perceber a literatura como algo que está além do escritor, algo que ele costuma alcançar, mas é maior que ele ainda que não prescinda de sua atuação. O próprio Eco, para diferenciá-la do autor empírico, denominou tal figura como autor modelo, idéia que ele mesmo admite bem abstrata, ainda que a defina como “uma estratégia narrativa, um conjunto de instruções que (no texto) nos são dadas passo a passo e que devemos (ou não) seguir”. O autor modelo é quem nos conduz, não pela história, que é função do narrador, mas pela construção textual, pelas referências e até pela multiplicidade de vozes narrativas do romance moderno.

 

II

Enfim, se o senhor Calvino de Gonçalo M. Tavares se parece com alguém, é com o Italo Calvino modelo, e não o empírico: pouquíssimos são os traços de caráter do personagem, sua personalidade é a soma do estilo do autor italiano e dos temas de sua obra que renovou o gênero da fábula com contos que exploram conceitos científicos e postulados filosóficos em livros como As Cosmicômicas, T=0, Se um viajante numa noite de inverno, As cidades invisíveis e O visconde partido ao meio.

Mas conheçamos o senhor Calvino: ele anda com um balão por semanas para lembrar do ar a sua volta; ritualiza o ato de abrir a janela para valorizar a paisagem e o próprio ato de ver; permite que uma letra A da sopa de letrinhas permaneça no canto da boca até cair, já que o guardanapo não tirou; cuida de um animal doméstico que se chama Poema; e se emociona com idéias. Calvino é um homem com um impulso de dar sentido às coisas: “Calvino sentia uma idéia a passar pela cabeça como sentia o frio na garganta”.

 

Calvino, o autor, disse certa vez em uma das palestras reunidas em Seis propostas para o próximo milênio que impunha à escrita limites (não limitações) e regras, sem os quais ficava à deriva. O senhor Calvino, por sua vez, ao lado de Duchamp, outro personagem, cria regras para um jogo após ele ter sido jogado. É a definição das regras, e não sua observação, que levará ao vencedor. Essa imagem é uma metáfora da literatura de Italo Calvino, autor que não sentencia, mas que cerca o sentido e o significado das coisas.

 

III

Vejamos outra aproximação entre o personagem e o autor modelo. Em O Senhor Calvino, Gonçalo M. Tavares cita Italo Calvino no texto cujo título é um enunciado jornalístico:

 

“O Archaeopteryx, considerado o elo entre os dinossauros e as aves, extinto há 147 milhões de anos, já voava como os atuais pássaros – revelou um estudo da revista Nature.”

 

Na passagem, o senhor Calvino reflete sobre a informação do jornal e especula se não seriam conservadores os pássaros por manterem as coisas iguais por 147 milhões de anos, mas acaba chagando à conclusão de que o que necessitava de evolução não era o mecanismo de vôo, mas o canto:

 

– Sim – poderia dizer o pardal contemporâneo, se dialogasse cara a cara com o Archaeopteryx, de há 147 milhões de anos –, sim, é verdade que voo exatamente da mesma maneira que tu, mas eu – diria o pardal – eu sei novas canções. 

 

Certamente uma homenagem ao escritor, a história cita abertamente o conto A origem das aves, de T=0, cuja abertura segue as regras dos contos cosmicômicos: um enunciado científico ou a descrição de um método de pesquisa, que, em seguida, são desenvolvidos ao longo do enredo e que trazem conseqüências a personagens como Qfwfq, testemunha da evolução do universo que sofre com suas transformações:

 

O aparecimento das Aves é relativamente tardio na história da evolução, posterior ao de todas as outras classes do reino animal. O progenitor das aves – ou ao menos o primeiro de quem os paleontólogos encontraram algum rastro –, o Archaeopteryx (ainda dotado de algumas características dos Répteis, dos quais descende), remonta ao Jurássico, dezenas de milhões de anos após os primeiros Mamíferos. Essa é a única exceção ao aparecimento posterior de grupos de animais cada vez mais evoluídos na escala zoológica.

 

A partir daí, Italo Calvino nos mostra as reações de Qfwfq ao testemunhar o primeiro pássaro e as transformações que seu aparecimento causam entre os seres vivos de então.

 

No entanto, certa manhã ouço um canto, de fora, que nunca tinha ouvido. Ou melhor (já que ainda não se sabia o que fosse o canto): ouço uma voz que ninguém nunca ouvira antes.

 

“Do descompasso entre o tempo macrocósmico, contado em bilhões de anos, e o comportamento humano, demasiadamente humano de Qfwfq e seus companheiros e companheiras, nasce a graça destas histórias em que Calvino fala com humor e ironia da ciência, do homem e dos tempos modernos”. Isso é o que diz a orelha de Todas as Cosmicômicas, volume que reúne As cosmicômicas, T=0 e ainda mais onze histórias divididas entre as séries Outras histórias cosmicômicas, Cosmicômicas novas e Uma cosmicômica transformada.   

 

Epílogo

Gonçalo M. Tavares é escritor português. Dentro da coleção O bairro já publicou também O Senhor Brecht, O Senhor Henri, O Senhor Valéry e O Senhor Juarroz. Aos 37 anos, Tavares faz parte de um time de escritores que vêm sendo publicados no Brasil com o apoio do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, ligado ao Ministério da Cultura de seu país, entre os quais Porto Literário já teve a oportunidade de conhecer Filipa Melo, nascida em 1972, autora de Este é o meu corpo, publicado no Brasil em 2004 pela Planeta.

 

Referências:

Gonçalo M. Tavares. O Senhor Calvino. Ilustrações de Rachel Caiano. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007. Edição apoiada pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas.

 

Italo Calvino. Todas as cosmicômicas. Tradução: Ivo Barroso e Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

 

Italo Calvino. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução: Ivo Barroso e Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

 

Umberto Eco. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução: Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

 

Filipa Melo. Este é o meu corpo. São Paulo: Editora Planeta, 2004. Edição apoiada pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas.

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