Destaquei uma vez que o escritor Alberto Martins foi o primeiro autor a colocar a Zona Noroeste, grupo de bairros da periferia de Santos, nos mapas literários. Isso ocorre em A história dos ossos, de 2005, no qual o protagonista circula por diversos bairros da cidade até atingir os mangues que dividem Santos e São Vicente.
Os mangues de A história dos ossos são como o litoral de Cais, sua obra anterior, livro de poemas publicado em 2002. Isto é, este e aqueles são espaços vastos, em que a geografia não se importa com a minúscula presença humana. Apesar do título do livro, o porto é só uma pequena cicatriz no meio desse “litoral inacabado” banhado pelo Atlântico Sul e que forma com a costa africana, como já indicou o autor, um mesmo espaço poético.
Uma passada de olhos pelos títulos dos poemas já nos põe em contato com a paisagem litorânea: Litoral, Ponta da Juréia, Desenho da paisagem, Barra, Noturno da Baixada, Em torno da cidade, Esboço de estuário, Daqui até a África, Da Praia Grande ao Mar Pequeno e Da Ponta da Praia são alguns dos poemas que retratam o litoral de São Paulo.
Em Ponta da Juréia lemos sobre o “martelo do mar” que castiga a pedra; em Desenho da paisagem o autor nos avisa sobre o perigo de viver à beira d’’água e seus efeitos sobre a mente; outro aviso é quanto ao risco de atravessar o estuário de balsa na “hora estreita”, aquele momento em que transatlânticos, barcos, balsas e barcos dos mais variados tamanhos se encontram dividindo o espaço do canal.
Noturno da Baixada é bem representativo da presença e da diversidade portuária, ainda que o porto e a cidade não tenham qualquer ascendência sobre a paisagem:
De noite a terra
baixa ainda mais
e entre as dunas
deixa ver
um negro transatlântico
traficando
de porto em porto
seu parco contrabando:
vozes, ferramentas
e um óleo pesado e grosso
que empapa o solo
entope os canais
o sono.
Triste cidade litorânea!
meus olhos mal te distinguem
do mar da terra da lama.
Outro poema que mostra a insignificância do engenho humano frente às forças da natureza é Anchieta com neblina, que descreve a descida da serra de carro com nevoeiro:
nesta via
de imprevistas
geografias
curva
fechada
pista
escorregadia
só espero
que os faróis
iluminem este chão
– agora e na hora
da mais árdua
cerração.
Epílogo:
Ainda que diminuída e achatada entre a serra e o mar, percebemos nos poemas de Alberto Martins a presença, quase um esboço, de uma região metropolitana, figura histórica recente e, por sua vez, ainda não explorada pela ficção. Da Praia Grande ao Mar Pequeno revela um pouco de nossas cotidianas viagens intermunicipais:
passar
entre margens em suspenso
como se
só no auge do silêncio
ouvisse
o balanço de uma língua-mãe
ou língua-mangue ou lagamar
a reunir em si todas as línguas
do lodo
do caranguejo
e da rã
– mas como articular em sílabas
um som que não tem centro
se o mar é tanto
e a ponte, pênsil?
Será que nossa região ainda falará um dia uma língua comum, capaz de dar corpo aos anseios de seus habitantes?
Referências:
Alberto Martins. Cais. São Paulo: Editora 34, 2002.